Título: Perfis e como escrevê-los

Autor: Sergio Vilas Boas

Este material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998, não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.

Adaptado por: Luana Suassuna, Rafael Péricles, Andressa Raniely, Pedro Henrique, Breno Mateus.

Adaptado em: Outubro de 2023.

Padrão vigente a partir de março de 2022.

 

Referência:  VILAS BOAS, Sergio. Perfis e como escrevê-los. 2.ed. São Paulo: Summus editorial, 2003. v. 69. p.1- 164.


P.Capa

 

[Descrição da imagem] Capa do livro. Sob um fundo branco há a ilustração em preto e branco do rosto de um homem de sobrancelhas grossas. abaixo da ilustração está escrito: perfis e como escrevê-los, Sergio Vilas Boas. Na parte inferior e central da capa está a logomarca da Summus editorial, no canto inferior direito está escrito 2ª edição[ Final da descrição]


P. 1

 

[Descrição da imagem] Ilustração composta por um círculo sob um traço transversal, um vertical e um transversal. Abaixo está escrito: novas buscas em comunicação. VOL. 69. [Final da descrição]

 


P.2

 

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

 (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

_______________________________________________________

Vilas Boas, Sérgio.

Perfis : e como escrevê-los / Sérgio Vilas Boas. - São Paulo:

 Summus, 2003. (Novas buscas em comunicação; v. 69)

 

ISBN 978-85-323-0721-7

 

1. Biografias 2. Jornalismo 3. Repórteres e reportagens

            I. Título. II. Série.

 

03-0202                                                                           CDD-070.44992

__________________________________________________________

 

Índice para catálogo sistemático:

 

1. Reportagens biográficas : Jornalismo                      070.44992

 

[Descrição da imagem] Logomarca da ABDR. [Final da descrição]

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P. 3

 

 

 

 

PERFIS

E COMO ESCREVÊ-LOS

 

 

 

 

SERGIO VILAS BOAS

 

 

 

 

 

[Início da descrição] Logomarca da Summus editorial. [Final da descrição]


P.4

 

PERFIS

 E como escrevê-los

Copyright © 2003 by Sergio Vilas Boas

 Direitos desta edição reservados por Summus Editorial

 

 

Capa: José Henrique Fontelles

Editoração: All Print

 

 

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Impresso no Brasil


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O narrador é um ser

 feito de palavras,

 não de carne e osso,

 como os autores.

 

Mario Vargas Llosa,

 Cartas a un novelista


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Sumário

Prolongamentos. 9

Feições de Um Perfil Jornalístico. 15

O Domador de veredas. 37

Solista da História Gaúcha. 47

O Brasil dos Ubaldos. 55

MR. Invisível do Brooklyn. 67

Alma de Relojoeiro . 81

Os Ossos de Ribamar 891

Cyberavó no Ancoradouro. 99

O Arquiteto de Microscopias. 111

A Incerteza em Crise. 121

Para gostar de sonhar . 131

O Artesão do consolo. 145

Uuna Cueva Em Cartagena. 153

 


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PROLONGAMENTOS

 

Há muitas conexões entre a narrativa biográfica longa, em forma de livro, e os perfis curtos publicados normalmente em jornais e revistas. Digamos, então, que este livro é um prolongamento de Biografias e biógrafos: jornalismo sobre personagens, em que discuto os limites e as possibilidades da arte de biografar.

Os fragmentos de minhas experiências como repórter, pesquisador e autor de perfis estão sintetizados a seguir, no ensaio “Feições de um perfil jornalístico”. O que lhes ofereço é um modo de escrever, ou melhor, o meu modo de escrever reportagens biográficas.

As doze reunidas aqui acabaram compondo um mosaico harmônico, Todos os personagens são escritores; todos os textos foram produzidos num período em que o tema biografias repercutia intensamente dentro de mim, quando o processo de pesquisa para Biografias e biógrafos estava a pleno vapor; e todos os perfis foram publicados no caderno “Fim de semana” da Gazeta Mercantil entre 1999 e 2001.

Entre uma e outra reportagem especial, procurei retratar o presente - e alguns episódios marcantes da vida — de cada um desses escritores com os quais me encontrei uma única vez, geralmente em suas respectivas residências (exceto Paul Auster e


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Gabriel García Márquez). A maioria das sugestões dos nomes foi minha.

Para este workshop, porém, reescrevi as matérias. Primeiro demarquei cortes narrativos nos momentos em que ocorrem mudanças de cenários, tempos, contextos ou no tema das entrevistas; preferi travessões em vez de aspas para o discurso direto; destaquei os trechos extraídos de livros e artigos; e usei o foco narrativo em primeira pessoa em alguns perfis, nunca por obrigação.

Somente em colunas opinativas permite-se o uso da primeira pessoa no jornalismo hoje em dia. Creio que é uma maneira utópica — e intransigente — de pretender que o narrador inexista. E de querer padronizar. Mas a lógica industrial da pirâmide invertida, com seus leads e subleads, é inútil em perfil. Informações e percepções não se acomodam em compartimentos estanques.

Na época da publicação destes textos, dispensei histórias por falta de espaço e tempo para digestão, e também devido às contingências do processo de edição de um suplemento. Aqui, mais à vontade, tento praticar Jornalismo Literário[nota *], também conhecido como literatura da realidade, literatura de não-ficção ou Creative nonfiction. O Jornalismo Literário foge das fórmulas rígidas de estruturação. Suas referências narrativas (procedimento e técnica) vêm da literatura.

Os repórteres da época áurea (1966-1968) da revista Realidade, por exemplo, podiam passar dias inteiros com a pessoa sobre a qual estavam escrevendo, semanas em alguns casos. Era primordial estar no lugar onde ocorriam cenas dramáticas para captar conversas, gestos, expressões faciais, detalhes do ambiente etc.; revelar os bastidores da matéria tanto quanto as impressões pessoais do autor sobre o personagem; usar o foco narrativo


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em primeira pessoa, diálogos, descrições minuciosas, reconstituições de época etc.

Hoje, as condições materiais e humanas são desfavoráveis a um jornalismo visceral como o daquele tempo. As idéias têm de nos acudir já bastante enxutas e ligeiras. Nem por isso devemos sucumbir. Pior do que não poder voltar o calendário 35 anos atrás é desconhecer que certas matérias já foram — e ainda podem ser — escritas com profundidade e refinamento. Mas jornais e revistas dão cada vez menos espaço para perfis construídos literariamente.

Outra medida adotada aqui foi descolorir os aspectos noticiosos exteriores aos personagens. Assim, a persona do escritor passa a ter mais importância que o “gancho” para justificar jornalisticamente o perfil — o lançamento de um novo livro ou alguma efeméride, por exemplo. Esses ganchos, diga-se, são uma maldição. Erguem e derrubam castelos. Escravizam as redações.

Ao eliminarmos os apelos fáceis e óbvios, o que vem à tona é o evento da entrevista, a vida do personagem, sua trajetória, seus altos e baixos, suas realizações. A despeito de certas teorias recentes, acredito que sujeito e obra são inseparáveis. Com base em criações, formulações e estilos podemos extrair elementos que nos ajudam a compreender melhor o indivíduo.

Não posso deixar de mencionar também o fato de que estes perfis são extensos para os padrões do jornalismo atual, por incrível que pareça. Mesmo na época em que foram publicados eles já eram longos. Alguns, como o de Gabriel García Márquez e o de Manoel de Barros, ocuparam página inteira do “Fim de semana”.

Os espaços de jornais e revistas estão cada vez mais disputados por avalanches de informações fragmentadas e por uma competição brutal em torno de formatos praticamente idênticos. Fica a impressão de que os veículos tentam se diferenciar apenas para que, no fundo, permaneçam iguais. O resultado disso é a ênfase nas pílulas de informação em detrimento dos “textos para guardar”.

Há ainda a tendência de as direções dos jornais e das revistas brasileiros acreditarem que seus assinantes não têm tempo e não


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gostam (sic) de ler. Por esse raciocínio paradoxal, reportagens um pouco mais detalhadas e humanizadas seriam geradoras de antipatias. Contradição das contradições. E um claro preconceito.

Acredito que os leitores sempre encontrarão tempo para narrativas que identificam seus destinos com o destino de outras pessoas, como quando dizem “puts, isso pode acontecer comigo”. O problema é que simplesmente desapareceram as reportagens hipnotizantes, aquelas que nos fazem esquecer o pão dentro da torradeira no café da manhã, perder o ônibus ou dilatar nossa ida ao banheiro durante o horário de trabalho. Diariamente, não se vê uma, uma única reportagem que crie essa empatia.

Então, a imprensa escrita está dando um tiro no próprio pé?, vocês devem estar se perguntado agora. A resposta é sim. O jornalista e escritor argentino Tomás Eloy Martínez, em sua conferência na Sociedade Interamericana de Imprensa, em Guadalajara, México, foi de uma clareza ímpar: “Se os jornais cada vez mais se recusam a publicar histórias vívidas, não há por que culpar a TV ou a internet por seus eventuais fracassos, e sim à sua própria falta de fé na inteligência das pessoas”.

A frigidez do Jornalismo convencional, que se opõe ao Literário, talvez seja reflexo de nossa época. Internamente, a mídia impressa não tem conseguido enxergar as várias alternativas disponíveis para oxigenar suas práticas. Ao contrário, embarca na idéia de uma desilusão generalizada das pessoas em relação aos ideais de justiça e igualdade. O perfil é um gênero jornalístico. Sem o Literário, no entanto, o perfil não hipnotiza.


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FEIÇÕES DE UM PERFIL JORNALÍSTICO

 

Diferentemente das biografias em livro, em que os autores têm de enfrentar os pormenores da história do biografado, os perfis podem focalizar apenas alguns momentos da vida da pessoa. É uma narrativa curta tanto na extensão (tamanho do texto) quanto no tempo de validade de algumas informações e interpretações do repórter.

E é de natureza autoral. Existem tantos modos de reportar quanto repórteres trabalhando em uma redação, por mais que nos digam que não, que tudo leva a uma única opção. Impossível que as experiências pessoais de um repórter não se confundam com a temática que estiver trabalhando. A pretensão à objetividade é uma fixação (ou seria um falso problema?) difícil de erradicar no cotidiano do jornalismo convencional.

Não me perguntem por quê (pelo menos não agora) essa teimosia em negar que as idéias refletem os sentimentos, conceitos e as sensações de quem as formula, do mesmo modo que as equações de um cientista exprimem seus insights e suas interpretações, ou do mesmo modo que o artista extrai sínteses de sua interação com o mundo - o que está ao seu redor e outros, compreendidos por sua memória ou imaginados.

Os processos de criação são multidimensionais. Neles, combinam-se memória, conhecimento, imaginação, sínteses e sentimen-


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tos, cinco elementos imprescindíveis ao trabalho autoral. A narrativa de um perfil não pode prescindir de todos os conceitos e técnicas de reportagem conhecidos, além de recursos literários e outros. Mas ela também está atada ao sentimento de quem participa. A frieza e o distanciamento são altamente nocivos. Envolver-se significa sentir.

Os perfis cumprem um papel importante que é exatamente gerar empatias. Empatia é a preocupação com a experiência do outro, a tendência a tentar sentir o que sentiria se estivesse nas mesmas situações e circunstâncias experimentadas pelo personagem. Significa compartilhar as alegrias e tristezas de seu semelhante, imaginar situações do ponto de vista do interlocutor. Acredito que a empatia também facilita o autoconhecimento (de quem escreve e de quem lê).

O poeta E. E. Cummings (1894-1964) dizia que o artista não é um sujeito que descreve, mas um sujeito que sente. E o jornalista? Seria um sujeito que não sente, que não deve ou que não pode sentir? Em O reino e o poder: uma história do New York Times, Gay Talese, um dos expoentes do New Journalism nos anos de 1960, nos lembra que o modo distante com que os jornalistas em geral observam o mundo lhes rouba aquela experiência mais profunda que brota do envolvimento.

Um dos resultados desse distanciamento é o risco de se tornarem voyeurs, que vêem muito e sentem pouco. Com o tempo, passam a encarar a morte e a tragédia, por exemplo, como coisa trivial, e não têm dúvidas quanto a seu direito de divulgar as fraquezas dos outros, sem nunca ter de se expor por eles mesmos.

A profissão de repórter nos credencia a ficar conectados com pessoas muito interessantes, e às vezes a uma distância física que o leitor comum dificilmente poderia estar. No entanto, transmitir uma compreensão — ainda que abreviada e efêmera — sobre alguém é delicado. Não basta embaralhar fatos biográficos ou aspear frases do personagem.

Até porque uma série de fatores perturba o processo de pesquisa e redação de um perfil, não importando muito se ele será


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impresso em publicação periódica ou não-periódica. Alguns desses fatores:

 

       O encontro pode não passar de uma hora de diálogo pouco empolgante, por mais que você se esforce para facilitar a interação. Todo momento é único, e todo perfil reflete um momento. Se achar que a entrevista foi dispersiva, há três alternativas: desistir da matéria, tentar marcar novo en­contro ou se virar com o que tem.

       O tempo para digerir as leituras, percepções e insights podem não ir além de uma noite, e você tendo ainda de dividi-las com preocupações domésticas, financeiras e outras. Muitas idéias interessantes escapam-lhe, ou lhe ocorrem tardiamente. Mas isso acontece até com quem tem tempo para escrever um livro.

       O espaço pode não passar de umas poucas páginas. Em revista, jornal ou livro, não importa, há sempre um limite. E a nossa capacidade de negociação do tamanho do texto é imponderável.

       Independentemente da extensão, aproveita-se apenas uma pequena parcela de tudo o que fomos capazes de pesquisar e ouvir. Mesmo assim continue indo além. Sempre.

       O (falso) problema da dimensão do personagem. Na imprensa convencional, os espaços, medidos em centímetros ou em caracteres, são determinados pelas realizações da pessoa. Mesmo assim, é preciso que as realizações tenham sido ratificadas pelo mainstream. Definida a pauta, esqueça a performance de seu personagem. Apenas ouça o que o sujeito tem a dizer.

       O estímulo à invasão de privacidade. A meu ver, isto é uma praga cuja origem está no culto cada vez mais doentio às celebridades e subcelebridades do showbiz. Diga não à tirania das aparências.

Preconceitos arraigados ou ignorância em relação ao personagem. Eis outro problema que pode afetar todos nós, repórteres e editores, imprensa e universidades. Em vez de


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forjar teses precipitadas, não seria melhor conhecer o sujeito por meio de leituras e diálogos?

          Choque de interesses. Eu não escreveria perfis para esculhambar, ridicularizar ou constranger. Ao contrário, tento descobrir o universal embutido nas particularidades, lançar luzes sobre dramas humanos que incitem o pensamento. Isso não tem nada a ver com generosidade, sentimentalismo ou rasgar seda. É possível criticar sem ofender; alfinetar sem ferir; homenagear sem trair-se; retratar sem granular.

          A crença na genialidade inata. O “gênio” é um exemplar humano bastante discutível. A meu ver, para a vocação de uma pessoa florescer e se destacar efetivamente, muitos fatores (mentalidade e cultura de sua época, condições financeiras, grau de persistência, apoio de pessoas próximas, auto-estima elevada e outros) têm de ser considerados. São processos simultâneos que convergem. Pense nisso.

 

Polifonias

 

Uma definição para os perfis? Há algumas. Steve Weinberg os chama de biografia de curta duração (short-term biography); Oswaldo Coimbra, de “reportagem narrativo-descritiva de pessoa”; Muniz Sodré & Maria Helena Ferrari acham que deve ser chamado de perfil o texto que enfoca o protagonista de uma história (a de sua própria vida), e de miniperfil o texto descritivo de uma personagem secundária inserido no momento em que ocorre uma interrupção ou um corte da narrativa principal. Mas não esqueça que instituições e comunidades também têm (e podem merecer um) perfil jornalístico.

Há ainda uma expressão mais abrangente e aberta, nascida no contexto das pesquisas qualitativas em Ciências Sociais (sociologia, antropologia, história, psicologia): Histórias de vida. Essa modalidade dá atenção total ou parcial às narrativas sobre as vidas de indivíduos ou de grupos sociais, visando humanizar


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um tema, um fato ou uma situação contemporânea. Na sua versão mais abreviada, a história de vida examina episódios específicos da trajetória do protagonista.

“A estruturação da matéria pode se dar na forma clássica da entrevista, do depoimento direto ou de uma mescla em que se combinam a narrativa em primeira e em terceira pessoa”, diz o pesquisador Edvaldo Pereira Lima, da Escola de Comunicação e Artes da USP. “Os modelos mais comuns são o autobiográfico, a entrevista biográfica e a entrevista-suporte para pesquisas. Outra versão das histórias de vida é a história oral, técnica da historiografia contemporânea.”

Em seus estudos e no dia-a-dia das escolas de jornalismo em que atua, Edvaldo incentiva a redação de histórias de vida com uma estrutura baseada na mitologia. Nos anos de 1950, o mitólogo e psicólogo americano Joseph Campbell, com base em estudos de mitologia comparada, observou as várias etapas presentes nas narrativas míticas. A síntese desse trabalho ficou conhecida como Jornada do Herói.

Edvaldo foi um dos primeiros no Brasil a discutir a Jornada do Herói no âmbito do jornalismo. Há mais de cinco anos orienta pesquisas acadêmicas e estimula a produção de histórias de vida nessa linha. A pesquisadora Monica Martinez, por exemplo, adaptou a metodologia da Jornada do Herói para as narrativas biográficas curtas, chamando a atenção para as várias fases vividas pelo protagonista, nomeando-as:

Cotidiano (o protagonista é apresentado em seu mundo comum); Chamado à aventura (momento em que o herói rompe com a cotidianidade); Recusa do chamado (o personagem hesita em aceitar, aceita ou recusa o chamado); Testes (período de crises, desafios e oportunidades); Internalização (fase de reflexões sobre o que se passou); Recompensa (objetivo inicial é alcançado); Retorno (volta ao cotidiano após a aventura).[nota1]


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Não trabalhei propositadamente com essa perspectiva nos perfis que se seguem, mas recomendo duas obras fundamentais para quem pretende compreender melhor o tema: O herói de mil faces, de Joseph Campbell, e A jornada do escritor — Estruturas míticas para contadores de histórias e roteiristas, de Christopher Vogler.

Retornando ao ponto central, o que se deve ter em vista no perfil é o personagem. Vivemos em um contexto intangível. Constantemente, nos achamos e nos perdemos. Qual o ponto de partida e de chegada? Acredito que é a biografia, a história de vida, o perfil. Ou seja, o personagem real. A experiência humana é nossa principal referência. Mas o jornalismo convencional — rígido, cartesiano, funcionalista — apresenta o indivíduo abstratamente. Segundo Edvaldo:

 

Apresenta-o através de coisas, números, dados sociais, achando que essas características externas, objetivas, constituem uma pessoa. Mas o protagonista só o é porque tem alguma coisa a dizer de dentro, não de fora. Em geral, o jornalista ilustra o fato com a historinha de alguém. No entanto, o que se quer na boa reportagem é encontrar o protagonista que vai irradiar o contexto sociocultural, as raízes históricas de um fato. O repórter encontra o protagonista de uma matéria por meio de sua própria impregnação na experiência humana. [nota2]

 

O protagonismo é um ímpeto eminentemente artístico. A arte sempre procurou tratar o personagem como exemplar para o conhecimento da natureza humana. Difícil pensar em literatura, cinema ou teatro sem personagens. Para nos aproximarmos das boas realizações, portanto, nós, jornalistas, deveríamos nos misturar com a arte constantemente, nos expor a ela — sobretudo à literatura e suas técnicas narrativas.

Mas não somente. Podemos traçar paralelos também com as artes visuais. Pintores, desenhistas e fotógrafos sabem que os portraits (retratos), por exemplo, representam um jogo malicioso. Os


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artistas sempre estiveram conscientes do problema de obter a expressão que pretendiam, não uma expressão qualquer. Em vez de pedir naturalidade a seus modelos, alguns fotógrafos deixam que a pessoa assuma a pose que assumiria se estivesse posando para um pintor. Já o fotógrafo francês Henri Cartier-Breson, ao que tudo indica, ficava à espera do “momento significativo”.

Ocorre o mesmo com os perfis jornalísticos. Mas, para o repórter, todo encontro (se houver) é único, e será sempre significativo. Mais, o perfilado não é exatamente um modelo em pose. Sua imagem não pode ser pretendida, portanto, e talvez nem se consiga que ela seja plenamente natural ou espontânea.

Primeiro, o repórter não pode (não deve, melhor dizendo) direcionar as palavras, os gestos e cenários para preencher o frame. Segundo, espontaneidade e artificialidade são oportunismos. Há casos em que a pessoa representa um papel, baseada em suas próprias projeções. Veste-se, maquia-se, monta o cenário para “receber o jornalista”; despe-se de sua gravidade, por exemplo, com o objetivo de demonstrar uma descontração genuína.

Segundo E. H. Gombrich, um dos maiores especialistas em psicologia da arte, são as atitudes do sujeito que constituem a linguagem dos portraits. Enquanto os portraits expressam, necessariamente, uma fisionomia, por mais tosca, os perfis jornalísticos expressam uma trajetória, por mais sintética. O perfil é explicitado pela história narrada, com um passado e um presente.

 

Em princípio, não há diferença entre representar uma coisa vista e uma coisa rememorada - nenhuma delas pode ser transcrita como tal, sem uma linguagem; nesse caso, sem aquele domínio da expressão que Rembrandt fez seu e que é patente de ponta a ponta em sua arte. Aqui, como sempre, a memória de soluções coroadas de êxito, as do próprio artista e as da tradição, é tão importante quanto a memória da observação.[nota3]

 

Leonardo da Vinci aconselhava outros artistas a dividir o rosto em quatro partes — fronte, nariz, boca e queixo — e estudar as formas que estas quatro partes podiam tomar. Uma vez que se


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tenham esses elementos do semblante humano firmemente gravados na mente, diz Gombrich, pode-se analisar um rosto com um único olhar — e retê-lo.

Quantas e quais partes um perfil jornalístico pode conter para ficar retido na memória do leitor? Quatro partes também, a meu ver, porém um pouco mais abstratas: lembrança, espaço, circunstância e interação. Da lembrança flui a história de vida; o espaço é a geografia do encontro — a tela do portrait, digamos; a circunstância representa o tal “momento significativo” a que se referiu Cartier-Breson; e a interação é o que leva a uma expressão (facial, gestual, opinativa etc.).

O perfil jornalístico não está livre de ambigüidades, exatamente como os portraits. Pense nas páginas e páginas devotadas à interpretação do sorriso da Mona Lisa (La Gioconda), de Leonardo da Vinci: Luxúria? Castidade? Ironia? Ternura? Talvez aquele sorriso não expresse nada além de um disfarce, mas quan­ta saudável ambiguidade está contida nele!

Observe também como as mãos da Mona Lisa sugerem um estado de relaxamento e concentração simultâneos. Sua mão direita descansa sobre a esquerda, que, por sua vez, apóia-se no braço da cadeira: relaxamento ou concentração? “E verdade que se pode pedir a um modelo que ria ou chore, mas o resultado obtido será apenas um esgar. É preciso sentir a expressão humana, e essa só vem no seu instante”, afirma Gombrich.

Os perfis também só podem elucidar, indagar, apreciar a vida num dado instante. São mais atraentes quando provocam reflexões sobre aspectos objetivos e subjetivos comuns à existência de todos nós. A meu ver, é o que se pode realmente conservar na memória. O restante empalidece com o tempo, ou adquire aquele tom desbotado típico das fotografias muito antigas.

 

AÇÕES E REAÇÕES

 

O retrato da pessoa precisa ser construído de modo que as questões interessem tanto ao leitor quanto ao próprio persona-


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gem. Em foco, evitando duas armadilhas ou “farsas” muito comuns, ambas contrárias ao leitor e ao bom jornalismo: uma é quando entrevistador e entrevistado se lançam como oponentes implacáveis, agredindo-se mutuamente, sem contribuir com idéias para nada; a segunda é quando um ou outro se põe na posição de defesa, a fim de ocultar mais do que revelar, ou de se exibir mais do que observar o interlocutor. Lidar com o temperamento às vezes difícil do outro é parte da técnica (e da ética) jornalística.

Numa reportagem biográfica podemos trabalhar com um conjunto de ações e reações atribuídas à pessoa em foco. Refiro-me ao que a pessoa diz a seu próprio respeito e ao que ela diz a respeito de outras pessoas ou a respeito dos acontecimentos contemporâneos que a afetam de algum modo; e também pelo que outras pessoas dizem dela. (Obs: em nenhum dos perfis deste livro me preocupei em colocar personagens uns contra os outros, por exemplo. A quem isso interessaria?)

Muitas vezes, o sujeito apresenta certas características, gestos, atitudes e pensamentos em função da fase que está atravessando. Opera-se, nesse caso, com o acúmulo de indícios, que podem ou não ser contrastados com dados do passado ou projeções para o futuro (feitas pelo próprio protagonista da matéria ou outros). Claro, haverá sempre o risco de formulações precipitadas sobre o temperamento, as idéias e o momento da pessoa.

Nos perfis deste livro, me deixei levar pelo que foi possível captar por meio de entrevistas e leituras. Não forjei teses nem me ocupei de estereótipos. Os episódios e as circunstâncias que marcam as narrativas se misturam, na medida do possível, com as opiniões dos escritores sobre temas da atualidade, interpretações acerca do que já havia se tornado público sobre eles e caracterizações com base no que me revelaram (às vezes sem dizer).

Apesar da durabilidade menor (comparados com as biografias em livro), os perfis têm grande relevância como gênero jornalístico, mesmo que meses ou anos depois da publicação do texto o


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personagem tenha mudado suas opiniões, conceitos, atitudes ou estilos. Paciência. Não há por que sofrer com o fato de que até as convicções são mutantes.

 

PROGRESSÕES

 

Lendo e relendo narrativas biográficas do passado e do presente percebemos evoluções e involuções no modo como têm sido construídos os perfis jornalísticos. E olhe que eles aparecem ocasionalmente em periódicos (mas não apenas em periódicos) há pelo menos dois séculos. No entanto, foi a partir da década de 1930 que jornais e revistas começaram a apostar mais na idéia de retratar figuras humanas jornalística e literariamente.

O importante era a própria pessoa, especialmente alguma celebridade do mundo das artes, da política, dos esportes e dos negócios. Esperava-se que a matéria lançasse luzes sobre o comportamento, os valores, a visão de mundo e os episódios da história da pessoa, para que suas ações pudessem ser compreendidas num contexto maior que o de uma simples notícia descartável.

Com esse espírito, os perfis se tornaram marca registrada de revistas como Esquire, Vanity Fair, The New Yorker, Life e Harper’s, entre outras. No Brasil, O Cruzeiro e Realidade também valorizaram esse tipo de jornalismo em suas épocas áureas. Talvez pelo espaço que reservava aos perfis, a revista The New Yorker, fundada em 1925, tenha ficado com o crédito de precursora do gênero.

O grande passo da New Yorker nessa direção foi a contratação do jornalista Joseph Mitchell, no final da década de 1930. Mitchell escreveu centenas de textos cujos temas não se restringiram a gente do showbiz. Ele perfilou também estivadores, índios, operários, pescadores e agricultores. Não conquistou um lugar entre os gigantes, como a maioria de seus perfilados, aliás, mas marcou época.

O mesmo ocorreu com Lincoln Barnett, repórter da Life, entre 1937 e 1946. Barnett contribuiu muito para a valorização do


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perfil como modalidade jornalística. Na única coletânea que publicou na vida — The world we live in: sixteen close-ups (1951) ele comentou por que e como escreveu alguns de seus principais textos e tentou demarcar as diferenças entre as reportagens biográficas e as biografias em livro.

Segundo Barnett, o autor de biografias extensas lida com indivíduos sobre os quais há evidências praticamente completas — os mortos — e sublima suas dúvidas em notas de rodapé. O autor de reportagens, por outro lado, preocupa-se basicamente com a transitoriedade de atributos externos, como atos ou palavras do personagem.

Mas nenhuma dessas limitações, na visão de Barnett, res­tringe os perfis, gênero aperfeiçoado nos últimos cinqüenta anos principalmente em revistas. As denominações perfil e close-up, que sugerem a idéia de silhuetas ou instantâneos, são enganadoras, na verdade. “O que os jornalistas buscam no espaço de poucos milhares de palavras é qualitativamente tão ambicioso quanto uma biografia convencional se propõe nas amplas e extensas páginas de um livro”, dizia Barnett.

Ele também aprendeu com o tempo que seus close-ups podiam render várias páginas mesmo quando ele não se encontrava pessoalmente com o protagonista da matéria, como ocorre com repórteres convidados a escrever sobre mortos, sobre pessoas temporariamente inacessíveis ou assumidamente avessas ao encontro com jornalistas. Foi o que ocorreu comigo no perfil de Gabriel García Márquez, escrito sem uma conversa tête-à-tête com Gabo, e sim com familiares e estudiosos.

Uma das limitações inerentes ao texto jornalístico é o repórter ter de enfatizar o presente da pessoa, ou de ligar esse presente à própria razão de ser da matéria – o lançamento de um novo livro, a comemoração de uma data significativa ou o envolvimento do personagem em alguma controvérsia jornalisticamente relevante.

Aprovemos ou não, funciona mais ou menos assim: personagens famosos despertam interesse de qualquer veículo de comu-


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nicação; idem aqueles não muito conhecidos, mas em evidência por algum motivo: já um personagem desconhecido, por mais iluminador, simplesmente não existe para o jornalismo convencional. Exceção para os grotescos, os pitorescos, os vitimados ou os loucos de pedra.

A humanidade está atravessando um período conturbado, em que o bruto e o banal se superpõem aos anseios por mais e mais velocidade, mais e mais escândalo. Como sair desta? Eis uma questão para o dia-a-dia - o seu, o meu, nas mídias e nas universidades. Mas a resposta só poderá vir à tona a partir do momento em que realmente admitirmos que algo está fora de lugar. Ainda não há um consenso sobre isso, infelizmente.

 

ONTEM

 

A excelência em perfis no Brasil foi impressa pela já mencionada revista Realidade em sua época áurea (1966-1968). Chamo atenção para as seguintes características dos textos biográficos de Realidade: imersão total do repórter no processo de captação; jornalistas eram autores e personagens da matéria; ênfase em detalhes reveladores, não em estatísticas ou dados enciclopédicos; descrição do cotidiano; frases sensitivas; valorização dos detalhes físicos e das atitudes da pessoa; estímulo ao debate; repórteres reconheciam e assumiam, em primeira pessoa, as dificuldades de compreensão da às vezes indecifrável mas sempre fascinante personalidade humana.

Aquela época gloriosa do jornalismo brasileiro foi decepada pelo Ato Institucional número 5 (AI-5), entre outros fatores. Mas gerou artigos exemplares. Citarei apenas alguns, todos de Realidade: Oscar Niemeyer (edição de julho/1967) e Francisco Matarazzo Sobrinho (outubro/1967) por Luiz Fernando Mercadante;(nota 4)


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Irmãos Villas-Bôas (maio/1967) por Carlos Azevedo; e Robert Oppenheimer (novembro/1967) por Oriana Fallaci.

Destaco ainda o perfil de Roberto Carlos escrito pelo então jornalista e hoje psicoterapeuta Roberto Freire para a edição de novembro de 1968. Trata-se de uma reportagem sobre alguns dias de convívio do jornalista com o astro e sua turma, entre shows, gravações, sessões para escolha de novos compositores, programas de TV, jantares e viagens.

“Eu nunca o havia visto fora do palco e dos vídeos”, assume Freire no texto. “Não eram os fatos de sua vida pessoal que interessavam, mas seu comportamento diante da profissão e da popularidade, suas reações de homem diante de tudo o que o rodeia diariamente.”

Os seguintes trechos da matéria ilustram o espírito cauteloso e autocrítico dos textos biográficos de Realidade:

 

Fui convidado para jantar em seu apartamento. Lá estariam, além de Nice [esposa de Roberto], mais três amigos que o acompanham desde o início da sua carreira. A conversa giraria exclusivamente em torno dos problemas que enfrentaram juntos para impor as roupas extravagantes e os cabelos compridos. Esperavam uma natural reação negativa e agressiva, principalmente por parte dos homens. E estavam dispostos a enfrentar tudo com a mesma agressividade.

- Se vencemos, foi na bordoada, viu? (p. 91)

Seria possível saber como se sente um ídolo, convivendo semanas com ele, participando de todos os seus momentos? (p. 96)

Sim, estávamos [Roberto Freire e o fotógrafo Roger Bester] tentando retratar e descrever um homem em crise. Crise artística e humana, pois essas duas dimensões são inseparáveis, ou talvez uma só nele. Mas o que significa estar em crise? (idem)

 

Os repórteres eram estimulados a conduzir diálogos verdadeiramente interativos a fim de humanizar ao máximo a matéria. Podiam mesclar informações sobre cotidiano, projetos e obras do


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sujeito; e opiniões deste sobre temas contemporâneos como sexo, família, drogas, dinheiro e política. Idéias e empatias coexistiam em nome de um retrato o mais nítido e literário possível da persona.

Como Roberto Freire, há um enorme arcabouço de jornalistas no Brasil e no exterior - caso de Janet Flanner, Nicholas Lemann, Calvin Trillin e Lillian Ross - que se notabilizaram como autores de perfis. Vários dos praticantes do New Journalism, na década de 1960, honraram o gênero.

Gay Talese, na minha opinião, é um dos mais representativos da turma norte-americana. Seu “Frank Sinatra has a cold”(nota 5) (“Frank Sinatra está resfriado”), publicado na edição de abril de 1966 da Esquire, é exemplar. O texto ocupou dezenas de páginas. Nelas, Talese retrata em palavras o temperamento imprevisível, especialmente mal-humorado e ofensivo de Sinatra quando incomodado por distúrbios triviais como uma dor de cabeça ou uma gripe.

Talese desembarcou em Los Angeles para o encontro mas Sinatra se recusou a ser entrevistado exatamente porque estava resfriado. Em vez de retornar a Nova York sem o texto, Talese decidiu ficar nos arredores à espera de uma oportunidade para ao menos trocar palavras com “The Voice”, o que não aconteceu.

Restou-lhe, então, seguir os passos do seu personagem por bares, estúdios, programas de TV, cassinos e lutas de boxe. Estava presente, por exemplo, em um bar de Beverly Hills, onde Sinatra bateu boca sem mais nem menos com Harlan Ellison, um jovem roteirista de Hollywood. O diálogo foi reproduzido tal qual ocorreu, transmitindo não apenas a exaltação de ânimos como o humor intragável de Sinatra naqueles dias.

“Frank Sinatra has a cold” mostra como o astro e sua trupe de então interagiam entre si e com o resto do mundo; aponta as colisões e coincidências entre as celebridades e os “mor-


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tais”; relembra e interpreta momentos marcantes da infância em Hoboken, Nova Jersey, onde Sinatra nascera cinqüenta anos antes da publicação da matéria.

As cenas são orientadas por ações, diálogos, descrições evocativas, doses de ironia e um grau de intimidade só possível por meio de conversas com amigos, familiares e desafetos do ídolo, além de muita pesquisa e leituras. É um típico perfil dos tempos em que o jornalismo era enriquecido com recursos da literatura de ficção; e em que os repórteres-escritores, incomodados com a padronização das notícias, preferiam as matérias “frias” à mesmice frenética do dia-a-dia.

Os parágrafos a seguir foram extraídos de “Frank Sinatra has a cold”. Observe-os com atenção. Note a riqueza da descrição do contexto (a fase que Sinatra atravessa) e do sentido que aquele resfriado tende a adquirir. Aproveite para tentar se lembrar de algum texto jornalístico recente que o tenha surpreendido com construções eminentemente interpretativas, como esta:

 

Sinatra estivera trabalhando num filme que já não lhe agradava, ele não via a hora de terminá-lo; estava cansado de toda a publicidade em torno do seu namoro com Mia Farrow (afinal, ela não tinha mais de vinte anos), que não estava presente naquela noite. Estava zangado pelo fato de um documentário sobre sua vida, produzido pela rede de televisão CBS, que deveria ser exibido em duas semanas, declaradamente se intrometer em sua vida privada, chegando a especular sobre sua possível amizade com chefões da Máfia. Estava preocupado com seu papel de astro num show de uma hora de duração intitulado “Sinatra - O homem e sua música”, exigindo que ele cantasse dezoito músicas com uma voz que, naquele preciso momento, algumas noites antes de se iniciarem as gravações, estava fraca, rouca e insegura. Sinatra estava doente. Era vítima de uma doença tão comum que a maioria das pessoas considera trivial. Mas quando se trata de Sinatra é capaz de fazê-lo mergulhar num estado de angústia, depressão profunda, pânico e até mesmo raiva. Frank Sinatra estava resfriado.

Sinatra resfriado é como Picasso sem tinta, Ferrari sem combustível - só que pior. Pois um simples resfriado priva Sinatra de sua jóia preciosa, sua voz, minando o núcleo da sua confiança, e afeta não só a

 


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sua própria psique, mas também parece causar uma espécie de corrimento nasal psicossomático nas dezenas de pessoas que trabalham com ele, bebem com ele, o amam e dele dependem para seu próprio bem-estar e estabilidade. Um Sinatra resfriado pode, em pequena proporção, enviar vibrações capazes de atravessar toda a indústria de entretenimento, com a mesma certeza que um presidente dos Estados Unidos, subitamente enfermo, pode abalar a economia nacional.[nota  6]

 

HOJE

 

Nossa razão aceita que os tempos mudaram, mesmo sabendo que as mudanças às vezes nos roubam a esperança de recuperar o que perdemos o coração, porém, sempre as renega. Aqueles que não tiveram a oportunidade de experimentar lato sensu a grande-reportagem literária nos moldes de Realidade e O Cruzeiro têm de se adaptar hoje a cenários bem diferentes.

Para adquirir segurança na missão de perfilar, é preciso estar ciente de que: o texto enriquecido com recursos literários perdeu importância no jornalismo tradicional; houve uma redução brutal dos quadros de jornalistas nas redações; os orçamentos para produção de matérias especiais estão praticamente fora das previsões das empresas; e, claro, falta de tempo para investigar, de espaço para aprofundar e de mentores para incentivar.

Os raros perfis que tenho visto em publicações nacionais representam uma quase-negação dos valores humanistas que pautavam as reportagens de quarenta anos atrás. O que aparece nas revistas de hoje não são as sutilezas do encontro, a pessoa por trás do mito ou a capacidade de observação do autor.

O que desponta tampouco é a descoberta compreensiva do universo, por vezes misterioso, às vezes exuberante, nem sempre comum, de “um ser humano como espelho das possibilidades disponíveis a toda a espécie”, como escreveu Edvaldo Pereira Lima. O que emerge são intrigas de bastidores, a invasão consentida, estimulada e premeditada da privacidade, a preocupação de al-


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guns jornalistas com o próprio marketing pessoal e o sedutor ofício de caricaturar gente bonita que “passa” na TV.

Oportunidades ímpares para a observação têm sido desperdiçadas. Observar é uma atividade complexa. Tendemos a acreditar que observar é apenas um exercício de percepção visual. Não é. A percepção visual é apenas um dos aspectos, igualmente difícil de praticar, pois requer tanta paciência quanto aquela necessária para se construir uma grande amizade.

Olhar pacientemente não basta. Os observadores mais atilados fazem uso de todo tipo de informação sensorial - olfato, tato, audição etc. Os insights mais importantes da história da ciência e das artes ocorreram com indivíduos capazes de apreciar o que os estudiosos da criatividade chamam de “o sublime contido no trivial”, ou seja, a beleza profundamente surpreendente e significativa das coisas cotidianas.

Segundo os especialistas, o caminho para o desenvolvimento da capacidade plena de observação passa por exercícios diários muitas vezes desprezados pela razão comum, como caminhar no escuro, apalpar ou cheirar objetos com os olhos vendados, tentar adivinhar o que há dentro de caixas e latas pelo peso e formato, e reconstruir os cenários ao nosso redor pela identificação dos ruídos.

Mesmo sem treinamento profissional para interpretar manifestações de caráter e temperamento, não surpreende que os bons textos jornalísticos do passado trouxessem também elementos de comunicação não-verbal. Por meio dela, pode-se compor um conjunto de pistas ao leitor para que ele tire suas próprias conclusões sobre o personagem.

O fato de os atos e as reações de uma personagem deixarem transparecer, ainda que de maneira fluida, as suas características, tem enorme importância na estruturação de um perfil. É a possibilidade de descrever uma pessoa contando o que ela faz e como faz, permitindo a incorporação num texto descritivo de trechos narrativos. São recursos consideráveis.

Infelizmente, adquirimos com os anos a tendência de culpar o tempo por tudo o que deixamos de fazer ou que fazemos automati-


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camente. Tudo o que consegui costurar até aqui não tem a pretensão de arrogar regras. O Jornalismo Literário não cabe em seitas. Se comento, questiono, alerto, sugiro, é para mostrar que as reportagens biográficas transportam elementos sutis situados muito além dos fatos e das técnicas.

Meu depoimento se atém ao todo, não às partes. Sei que as pessoas estão cada vez mais ávidas por técnicas, métodos, cartilhas. Do-it-yourself. De qualquer maneira, estou me expondo. Pode ser um ato de coragem tanto quanto uma prova de ingenuidade. Como não me considero propriamente um corajoso - confesso que em alguns perfis me deixei vencer por alguns obstáculos - me resta ser ingênuo. Ingenuidade é um atributo do qual precisamos para seguir vivendo, ou para “arrastar a carga”, como me disse o escritor sergipano Francisco Dantas em O domador de veredas (p. 35).

 

CRIADORES E CRIATURAS

 

Escritores de modo geral sempre atiçaram a minha curiosidade. A mídia costuma fabricá-los como seres sofisticados, impolutos e glamourosos. Eu mesmo cheguei a encará-los desse modo décadas atrás. Na minha cabeça de adolescente, eram indivíduos resolvidos, sábios, deuses que transformam em grão de areia aqueles nossos duros embates com a solidão, a morte e o amor.

Por outro lado, os escritores em geral são pessoas de carne e osso que raramente confiam no próprio taco. Seus projetos, quando verbalizados, podem parecer inconsistentes como gel para cabelos. Já ouvi muitos dizendo que consideram desprezível o que pensam e escrevem. Jorge Luís Borges, por exemplo, achava que tudo o que ele leu era mais importante do que tudo o que escreveu na vida. “A pessoa lê o que gosta - porém não escreve o que gostaria de escrever, e sim o que é capaz de escrever”, dizia.

Os escritores têm um espírito saudavelmente infantil também. Quando os leitores declaram que gostam do que escrevem, sentem-se contentes como um garoto que acaba de ganhar um


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chocolate. Ou seja, vivem de imagens e auto-imagens, desejos e disfarces. O entusiasmo em relação à qualidade do que produzem vai diminuindo com a idade, creio. Mas o que os apavora mesmo em todos os momentos da vida é o fantasma da estagnação e o risco de suas obras passarem totalmente despercebidas.

Outra impressão instigante que os escritores me dão é a de que precisam insistir na tecla de que são normais, de que se comportam como pessoas normais. Adoram falar de assuntos triviais como viagens, gastronomia e política, talvez para deixar claro para si mesmos que seus pés estão devidamente fincados em terra firme. Mas quando o assunto é a arte da escrita, falam como se fosse uma atividade qualquer. Desconversam, exageram, zombam.

Enfim, por “culpa” dos escritores me acostumei a tentar compreender o mundo lendo-o. Formulações escritas me captam a atenção muito mais rapidamente que imagens, embora seja aficionado de cinema. Da mesma forma, as subjetividades (as perguntas sem respostas fáceis, digamos) me encantam mais do que dados indiscutíveis. Transito entre os caminhos mais longos e os feitos perenes.

 

DOZE PERSONAS

 

Os doze personagens aqui reunidos existem pelo que são ou pelo que deixaram de ser; são autores consagrados ou preteridos; no auge ou no ocaso; em plena ebulição de idéias ou em crise existencial; na maturidade ou na sofreguidão; escondidos ou evidentes em um mundo às vezes incompreensível; vivendo conforme suas opções ou conforme as imposições do destino; vigorosos em suas tragédias pessoais ou atônitos diante de surpresas agradáveis; com mais ou menos consciência de nossa atualidade.

Francisco Dantas, Gilvan Lemos, Assis Brasil, Cristovão Tezza e Antônio Barreto são pouco ou nada conhecidos nacionalmente. Procurei, então, introduzi-los no universo do leitor, esse “animal” que todo jornalista pensa conhecer. Como bem escreveu José Castello em O inventário das sombras, repórter,


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qualquer repórter, é por definição um intermediário entre o que desconhece (seus objetos) e o que julga conhecer (seus leitores)”/

Diferentemente, Gabriel Garcia Márquez, Paul Auster, Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro são mais conhecidos do que muitos políticos por aí. Os quatro me exigiram mais pesquisa do que os outros. Além do mais, não pude ver Paul e Gabo com meus próprios olhos, e talvez tenha surpreendido Ubaldo e Gullar em momento inoportuno. A versatilidade teve de se impor.

Quanto a Sérgio Sant’Anna, Lya Luft e Manoel de Barros, eles são bastante cultuados, mas ainda não têm o mesmo alcance de outros escritores brasileiros, infelizmente. Manoel de Barros, apesar de ter caído no gosto dos leitores nos anos de 1990, é um poeta low profile que se comunicou comigo mais em versos do que em prosas.

Já a entrevista com Sant'Anna no bairro das Laranjeiras, no Rio, foi longa, mas não consegui demovê-lo de seus temores. Ele próprio me disse: “Normalmente adoro viajar nessas questões que está formulando, mas ando pouco inspirado”. Lya Luft, por sua vez, mostrou-se mais afetuosa do que imaginei quando o nosso assunto foi nada mais nada menos que as proezas do destino.

 

Afeiçoadamente

Sérgio Vilas Boas

8/11/2002

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O DOMADOR DE VEREDAS

Impossível evitar a contaminação pelas especiosas palavras que Francisco J. C. Dantas escreve aos montes e pronuncia aos poucos. Ele é um cabra caladão. Chicoteia o próprio lombo, se necessário, exigente que é, mas jamais esporeia o silêncio. Não consegue se acomodar no desconforto de conversas afobadas. Os verbos parecem se despregar de sua língua a trotes.

              Seu primeiro livro - Coivara da memória (1991) - foi publicado quando tinha cinqüenta anos. Por que demorou tanto?

              Sou um pouco lento no andar, no decidir, e, às vezes, quando estou muito à vontade, no falar. As idéias custam a me acudir.

Estrilador arredio, espinhento, cabeçudo. São autodefinições dele, feitas com certo rigor literário. Em sua convicção mais profunda, acredita que o ofício de escrever é inútil como qualquer outro. Não salva ninguém do desespero, apenas ajuda a arrastar a carga. Muito antes das 24 horas de nossa convivência, no entanto, revelava-se gentil, tolerante e espirituoso.

Para conhecer Dantas é preciso - ou melhor, é absolutamente necessário - aceitar que seus textos têm raízes profundas e um vigor indomável. As palavras batem, rebatem e resvalam em nossa memória, formam idéias e vão-se orquestrando articuladas meio à força pela natureza que as cerca.


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No avião, rumo à capital do menor estado da federação das províncias desunidas do Brasil, eu me perguntava se é possível saber de onde vem a inspiração deste homem então às vésperas dos sessenta anos. À noite, hospedado em sua fazenda Lajes Velha, em Itabaianinha (SE), depois de muito vinho, poemas e um espetáculo de gotículas de chuva extemporânea visto da varanda, minha curiosidade continuava à flor da pele.

Mas àquela altura eu já tinha algumas pistas: a inspiração de Dantas vem do coaxar tresloucado dos sapos do açude ali bem diante desta janela; da garganta dos galos que daqui a pouco vão saudar o amanhecer; do berro abafado das dóceis cabras Saanen; dos olhos silenciosos dos bois Tabapuã-Chianina; dos trinados de grilos ouriçados com a novidade das luzes na varanda da sede; dos bufos da burra Medalha, a queridinha na qual ele se deixou fotografar montado com chapéu de palha, manga de camisa e botas.

O chapéu de palha esconde as frinchas da testa para os estados desconfiado-relaxado; a camisa de colarinho quebra a ancestral nostalgia dos vaqueiros do sertão; as botas de couro delicado e lustradas não trazem vestígios de adubo; as estaturas nordestinas sua e de Medalha se proporcionam no enquadramento; o que realmente sobressai no fosco do papel-filme é o bigode grisalho e a imponência de Dantas, cujo rosto lembra muito o de William Faulkner.

Dentro ou fora das páginas de Coivara da memória (1991), Os desvalidos (1993) e Cartilha do silêncio (1997) impera um universo poético-visual marcante até para testemunhas não-metropolitanas. Lajes Velha é centro de resistência às seduções fáceis, fonte, santuário, prova de dignidade de um sujeito capaz de implodir os pejorativos do ser provinciano.

              Literatura é mistério também, num sabe?

              Sei. Então, como é que o senhor...

              Senhor, não.

              Então, como é que você lida com...

              Não lido.


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Dantas é turrão. Escreve a pospelo (Ih, impregnei-me) das tendências atuais e não transige no que concerne à expressão. Dane-se o politicamente incorreto, a escatologia, os detetives sabichões, o sexo apimentado, o tráfico de drogas nas periferias faveladas, o roquinrol, a ação descartável... Pro inferno a fusão entre o verossímil e o inverossímil.

              E outros recursos em voga, arrivistas.

Contenta-se com arroubos de crítica espontânea a sua obra. Para ele, é o que compensa a feitura de um livro, não a evidência da moda ou o amador mercado editorial brasileiro.

-           É gratificante a boa crítica. Mais do que ver o livro vendido como sanduíche. - Fisga um rabanete em conserva e uma lasca de macaxeira frita, produtos de sua terra.

Pensamos em voz alta sobre se os temas escolhem um autor ou se é o contrário.

              De que modo a memória te acode?

              E um atraca-atraca dos diabos. Os temas negaceiam, me provocam de estucada e vão tirando o corpo fora que nem galo de rinha que briga de retirada.

Sua escrita pode envolver o leitor atento a galopes, contrariando os temperamentos, ou mesmo gerar um mal-estar danado no iniciante, devido a dificuldade das novas gerações de enfrentar movimentos “do tipo parado”.

Destoados da massa da produção brasileira dos anos de 1990, os três livros de Dantas foram aclamados pelos críticos do centro. José Paulo Paes foi a Aracaju especialmente para conhecê-lo. Alfredo Bosi - que o incluiu na 32a edição da História concisa da literatura brasileira - e Benedito Nunes correram a avalizá-lo pela via das orelhas, quartas-capas e ouvidos. Outros chegaram a compará-lo a João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, sem nos convencer.

-              O que achou dessas honrarias todas?

-              Muito disso era por conta do exagero momentâneo, do alegre sabor da novidade. Nem Guimarães Rosa nem Graciliano gostariam de ser tão mal comparados.


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Semelhanças há, afora as exaltadas e muitas vezes inúteis disputas por fama fácil e fardões. Guimarães Rosa revigorou a linguagem e deu uma banana aos modismos. Dantas, por seu turno, cerca as palavras de todos os cuidados, lapida todas as suas faces.

Graciliano travou com a escrita uma batalha férrea para atingir o estritamente essencial. Nesses termos, Dantas se equivale ao mestre somente na batalha férrea, pois não se deixa escravizar pelo foco estrito. Diferenças também há entre os três, passíveis de discussão porque paradoxais. Rosa era encantado com o mundo e suas veredas. Dantas, um cético, quem sabe um anônimo domador de veredas.

              Sou um homem sem ilusões.

Seus personagens, como os do econômico Graciliano, são pobres-diabos nordestinos presos a ambientes hostis, vitimados pela falta de saída em uma região do Brasil que não consegue aumentar seu contingente de classe média.

Nos três romances, os enredos decorrem do declínio financeiro: a desagregação dos clãs com o agravo do tempo, a erosão do patriarcalismo, o esfacelamento da pequena burguesia local, a intrusão da chantagem e do suborno como métodos de ascensão, as astúcias da boa e da má sorte, a desgraça da inveja. Sergipe é a esfera que afeiçoa os conteúdos, mas poderia ser qualquer outro lugar do mundo onde haja fome, miséria, injustiça e violência, subprodutos da decadência econômica e moral.

 

*

Mesmo com as fronteiras estéticas em extinção, poucos críticos escaparam da armadilha genérica de incluir e desincluir Francisco Dantas do índex dos autores regionalistas. Os reis da cocada preta, ou melhor, os americanos, colariam esse rótulo em Steinbeck ou Faulkner?

              Sei não.

O termo regionalista surgiu no Brasil com nordestinos publicados a partir dos anos de 1930, como Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge de Lima e outros. Tem sido


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aplicado a obras ambientadas em cenários periféricos ou conforme o alcance da temática, supondo-o mais restrito.

              Quem tem mais alcance, Graciliano Ramos, com seus sertanejos, ou João Antônio, com seus malandros cariocas?

              São questões irrespondíveis, como essas em torno do que chamam “espírito da obra”. Alguém já presenciou o encarnar do espírito de uma obra literária? Todas as explicações sobre essa matéria são feitas pelos extremos, nunca pelos intermédios. Na prática, porém, prevalece a geografia. - Essa formulação, Dantas a fez por escrito.

-              Até São Paulo tem regionalismo, ou tinha. Monteiro Lobato, por exemplo, com histórias que se passam no interior paulista. Mas o estado de São Paulo deixou de ser regionalista para se tornar centro a partir de 1922, com a Semana de Arte Moderna. Acharam-se no direito, então, de afirmar que tudo o que tinha vindo antes era pré-moderno. Diacho.

-              O que isso quer dizer?

-              Para quem está no Rio ou em São Paulo, é cômodo falar em regionalismo. É um modo de olhar os outros por cima. No Nordeste, ocorre uma aceitação passiva de tudo isso, o que é uma desgraça. Por outro lado, existem por aqui claques radicais dispostas a aplaudir qualquer ataque maciço ao Eixo. Em geral, são pessoas financiadas por secretarias municipais e/ou estaduais, sem nenhum conhecimento de causa.

Para quem ainda não sabe, a literatura comporta bastante bem qualquer visão de mundo. Os tais modos arredios de Dantas parecem um mecanismo de defesa do professor aposentado da Universidade Federal de Sergipe contra a inescrupulosidade.

Dantas não pertence a igrejinhas, clubes, partidos ou agremiações; não faz coquetéis de lançamentos ou dá palestras sobre os próprios livros; como professor, evitava participar de bancas de defesa de teses; rechaça veementemente burocracias e lobbies. Tem o dom do encasulamento, o que pode tanto esconder


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quanto revelar. E não se trata de pirraça do escritor. É coisa do homem Dantas.

              Ele é um casmurro. - Alertara-me a amiga e ex-aluna de Dantas, Maria Célia Santos, que viajou comigo em táxi de Aracaju a Itabaianinha. [Um anjo passou por Aracaju no final de 2001. Achou que devia levar consigo a simpática Maria Célia; e ela topou.]

Dantas é daqueles que conhece uma pessoa pelo caráter, em pouca conversa.

              Se o percebo como bom, fico logo íntimo.

Maria Célia, reabastecendo-nos de macaxeira frita, intervém:

              Esse homem aí nunca chegava atrasado nem faltava às aulas, quando era professor.

Também foi tabelião em Itabaianinha, e detestava. Suportou um pouco melhor a diretoria de escola, e bem melhor a cavalaria de pastos, a folearia de formigas pelas madrugadas, a caça aos viventes diurnos e noturnos, o autodidatismo em fotografia.

Submeter-se à devassa pública remetendo originais ou publicando um livro foi outra dureza. Dantas nunca se dedicou efetivamente a expor-se à avaliação das editoras. Mesmo assim, enfrentou a indiferença, de viva voz ou por escrito.

Antes de Coivara da memória, era “um aspirante nordestino sem prefácios, com um romance ambientado no interior de Sergipe e ainda por cima morando em Aracaju”. Enquanto aguardou respostas que não vinham ou evasivas, ficou imaginando caras entortadas de ironia, reticências e respostas formalóides de gente que pensa ter o rei na barriga e que se esconde no argumento da falta de tempo até para namorar o próprio umbigo.

              Guardo algumas escritas que comprovam isso.

Coivara não teria sido publicado sem a teimosia da atual esposa, a poetisa e acadêmica Maria Lúcia Dal Farra, paulista de Botucatu.

Em compensação, o terceiro livro, Cartilha do silêncio, ele nem me deixou ler no original. Mandou direto - conta Maria Lú-


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cia, tentando desmontar esse personagem que, a todo momento, recorre à mulher para tentar clarear a memória.

              E é, Maria Lúcia?

Dantas temia pelo destino de sua primeira cria. Quando ela partiu de seus braços, sua casa virou um buraco.

              Fiquei atarantado. Suspirava, penando pelos cantos, imaginando mil acolhidas e desacolhidas. Foi como se um filho tivesse se aventurado a ir cavar o futuro num país desconhecido. Como eu era ingênuo.

Difícil hoje em dia atingir leitores dispostos a tocar a solidão de um autor, não? Nós, contemporâneos, parecemos desejar e consumir para suprimento de necessidades concretas - psicológicas ou afetivas. Somos predominantemente urbanos e não mais nos curvamos a obras interioranas-rurais, que não falam a nossa língua.

              Acredita mesmo nisso?

              Sim.

Além de tudo, crítica e público são searas difíceis de esquadrinhar, embora os meios de comunicação insistam em operar com casuísmos pseudocientíficos. Coivara e Os desvalidos tiveram segunda edição. Dos três mil exemplares de Cartilha do silêncio ainda restam algumas dezenas. Em Sergipe, Dantas diz ser conhecido pelo mérito exterior de seus livros. Para ser celebrado no próprio estado, é preciso repercutir antes no ex-Sul Maravilha.

              Receptividade é um tiro no escuro, disparado na cabeça de um alfinete.

 

*

Arrastado para a escrita como um cego sem remissão que perscruta o silêncio, a infância teve poder de mando na vida desse homem nascido na pátria rural de Riachão do Dantas. Meninos vendendo pirulitos, o grito do louco na cadeia, a mocinha de saia plissada, o Talho de Carne Verde com Dorico enlambuzado de sangue perseguem Francisco o tempo todo.


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Com essas e milhares de outras lembranças, tenta entreter as próprias angústias. Vinha revelando a memória de sua gente em filme 35 milímetros copiado em papel dentro de seu laboratório próprio e improvisado, valendo-se mais uma vez do autodidatismo para resgatar o passado em preto-e-branco.

Não mais. A literatura parece ter substituído em firmes tons de eternidade seu modo de “esmiuçar os desvãos do passado”.

-           A escrita se adapta bem ao retiro aqui, nos cafundós.

Em seu refúgio, a dignidade de cavalheiro aparece nas experimentações gastronômicas universais, na biblioteca fornida e nos computadores de seu escritório. Mas continua homem de raiz plantada em sua terra, de onde só saiu para completar a formação básica e superior. Nem cogita de morar em outras províncias distantes. A estada fora para mestrar-se e doutorar-se - sobre Osman Lins e Eça de Queiroz, respectivamente - só surtiu os efeitos que podiam surtir.

              Continuo podendo me arranjar sem os encantos das metrópoles.

              Nunca pensou em sair?

              Pra fazer o quê? Pra que me violentar? Escrever já é um enfrentamento e tanto.

Locupleta-se, então, com seus bichos e plantas e no convívio com personagens que, não fossem reais, pareceríam inverossímeis. Cumpádi Nelson, por exemplo, o velho caboclo vizinho que não trata a hérnia na virilha porque não se permite despir pro seu doutor - e a mulher de Nelson faleceu de câncer no útero por nem considerar a hipótese de se exibir para um ginecologista. Cumpádi Nelson está para Francisco Dantas como Bernardo para o poeta Manoel de Barros. São como duas criaturas obsedantes.

-              Os personagens é que peitam meus enredos, não o contrário.

Eles e elas falam por si e por intermédio de si, com todas as palavras, como neste trecho de Coivara:

 

Nessa volubilidade de querer chegar até onde me embargam os passos, empenhado em buscar tanta coisa além desta sombra que sobrou, aqui


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e acolá vacilando a meio estirão andado - só esta mania de tudo reviver continua a me devorar, na crua obstinação de me manter abismado diante de um passado que tortura o presente e anuvia o futuro: repuxão descontínuo que hesita e reata, mas nunca deixa de avançar, insaciável nas solertes investidas.

 

*

Progresso é o “atingimento” da simplicidade, na ficção ou na ilusão da vida real. Na região da fazenda Lajes Velha os agricultores estão em penúria.

              Ninguém mais vive de agricultura por aqui. Só de subsistência. Meus vizinhos estão quebrados.

Dantas começou uma criação de cabras Saanen, plantou quinhentos pés de coquemos irrigados, que, como retorno, deverão dentro de um ano devolver águas para que alguém as engarrafe. Mas é um empreendedor de aparências. Não vislumbra ganhos que possam ir muito além da manutenção da casa sesquicentenária, feita de taipa, avarandada, o cume do telhado de duas águas suspenso a uns cinco metros do chão, talvez o único ponto aonde as dezenas de gatos de Maria Lucia Dal Farra não alcançam.

              Se esta fazenda se pagar, já estou satisfeito. Como marginal que sou, na literatura e na vida, nada do que boto a mão vira dinheiro. Nesse campo, sou nulo.

Na verdade, procura alimentar-se de víveres próprios; cavouca com as mãos hortas que não dispensam manjericão, coentro e salsas, e gosta mesmo é de admirar as surpresas dos roseirais; às vezes toma banho de bica e, quando há, aprecia uma carninha de jacaré. Outro dia liguei pra ele de São Paulo:

              Olhe, Sérgio, estendemos a varanda da sede mais alguns metros rumo ao açude. Você precisa ver. - Foi logo dizendo.

Dantas é um sujeito austero, mas impontual; sonhador, porque ensimesmado; fecundo, mas tímido; autônomo e ao mesmo tempo dependente: de companhias inteligentes, de CDs de jazz, de gastronomias elaboradas, de viagens aos paraísos perdidos da Terra.


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Enquanto conversamos no escritório atulhado de papéis e mobílias, Maria Lúcia, Maria Célia e a empregada Vânia se movimentavam rapidamente lá na cozinha. De vez em quando uma ou outra aparecia para saber se estava tudo bem, se estávamos bem servidos, e pediam desculpas pela interrupção.

Voltavam para a cozinha e eu imaginava as três lá dentro torcendo para que o evento da entrevista transcorresse perfeitamente, como se fosse a cerimônia de posse do presidente da República. Minutos depois as três me surpreenderíam com um banquete ao ar livre com direito a pato assado e tudo.

              Os mais ingênuos costumes dessa região foram atropelados, viu. - Prossegue Dantas. - Nas feiras daqui não se encontram mais os rolós [calçado rústico para montar cavalo]. As novas gerações nem sabem o nome. Foi uma aculturação galopante.

Ele mesmo não resistiu. Comprou em Barcelona um par de botinas de números diferentes, calhados ao seu pé direito maior que o esquerdo.

Está bem, está bem. Pois se não são ideais que movem o mundo, o que o move, então? Em Os desvalidos, história a ser filmada pelo cineasta Francisco Ramalho, uma insinuação:

 

É a sina que iguala todos nós, conforme o quilate de cada um. [...] Mas quem tira e bota é o zinabre do dinheiro. [...] nas regras havidas por estas bandas, o suplicante, mesmo apenas pra sobreviver a farinha e rapadura, tem de entrar na lei de se acoloiar com algum grandola mandão.

 

Que país é esse? Entro no avião em Aracaju em uma tarde de sol a pino e um calor desumano, as mãos carregadas de pacotes de goma de tapioca e a barriga avolumada por uma saborosa moqueca de arraia consumida minutos antes. Um jornal local informa que os urubus ao redor do aeroporto de Aracaju estão pondo em risco as turbinas dos jatos. A cabeça fervilha trocadilhos e paródias: perfilar também é um enfrentamento e tanto.


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SOLISTA DA HISTÓRIA GAÚCHA

 

Ele é baixo, grisalho, calvo e de cavanhaque espesso; leva óculos de lentes grandes, mas não grossas; está elegante em um trivial casaco de tweed cinza sobre um pulôver vinho; e parece confortável dentro da calça de lã e do mocassim supermacio; nasceu em Porto Alegre, descende de açorianos; professor universitário, colecionador de arte sacra; apaixonado por Lisboa; gentil, pensativo, cartesiano; escreveu Manhã transfigurada (1982), Videiras de cristal (1990) e Concerto campestre (1997), entre outros.

Refiro-me a Luiz Antônio de Assis Brasil, ex-violoncelista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) - um “músico de estante”, como ele recobra aquele tempo. Assis (como conveio chamá-lo) virou solista na literatura depois de uma guinada radical, mas sem grandes traumas.

Antes de trocar de palcos, a música ocupava-lhe todos os sentidos. Barítono nos corais da paróquia, encantara-se pelos violoncelos posicionados ao lado de seu naipe. Aos dezessete, estudava o instrumento. Aos 23, ingressava na Ospa, onde trabalhou treze anos.

Assis chegou a pensar que ia ser músico pelo resto da vida, o que provavelmente o assustara.

Criadores mesmo são os compositores e os maestros. Eu não tinha competência para compor ou reger.


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Com o tempo, o arco do instrumento já estava virando caneta-tinteiro; a estante, escrivaninha; a partitura, máquina de escrever; o violoncelo fabricado em 1838 por Giuseppe Baldantoni em Ancona, Itália, transmutava-se em saudável lembrança.

              Vendi-o por preço simbólico, quando constatei, já fora da Ospa, que não podia acompanhar os meus amigos nos concertos de câmara. Como não estudava, eu estava tocando cada vez pior.

Do músico aspirante a escritor restou o escritor de ouvidos refinados, encantado por Mozart.

              Tenho sobre Mozart toda a bibliografia em língua portuguesa e obras em língua estrangeira. Sua luminosidade iluminista - redundância necessária - me fascina. As melodias são claras, lógicas, fáceis de apreender. Como ser humano, admiro o fato de ele ter escrito música de insuspeitável qualidade estética e de tê-la encarado como trabalho.

*

A literatura não apenas acomodou os anseios mais profundos do adulto Assis como lhe deu estofo: o romance histórico, antecessor do romance moderno, nascido no século XIX, tendo a veracidade como ponto de partida para exercícios de imaginação. Assim ele cobriu de matizes vários episódios da história rio-grandense e ergueu castelos ficcionais humanizando personagens míticas.

              É difícil, para mim, dramatizar o cotidiano de um vendedor de carnês, por exemplo.

Há muitos leitores que conscientemente se deixam atrair por ficção histórica, talvez por reconhecerem que tais narrativas são a “história do escritor”, importando mais as interferências feitas do que o contraponto dos registros oficiais.

Embora a maioria de seus livros tenha recebido resenhas elogiosas no Sudeste, o reconhecimento de público foi alcançado mesmo em seu Rio Grande do Sul. Em lugar de cenários estáticos, em torno dos quais circulam personagens baseadas em registros oficiais, preferiu o romance como crítica ao passado rio-grandense.


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-           Obras de cunho histórico também podem, e devem, satisfazer os leitores intelectual e esteticamente. José Saramago trabalha muito bem as duas vertentes.

Assis operou controvérsias em A prole do corvo (1978), por exemplo, ambientado na época da Revolução Farroupilha (1835-1845). No livro, o líder revolucionário Bento Gonçalves é apresentado como um sujeito falível, a contragosto das tradições gaúchas.

-           A história parece ser um problemaço para os autores gaúchos contemporâneos seus.

-           É verdade. Até a minha geração, a história era um problema. Somos credores e devedores dessa cultura. Credores porque utilizamos temas regionais; devedores porque essa cultura nos esmaga. Eu e outros autores daqui do Sul nos vemos obrigados a discuti-la. As novas gerações não se ocupam disso. Portanto, sou um autor “fim de raça”.

              Isso vale também para as gerações de leitores?

              Acho que ainda existe público aqui para livros de ficção histórica rio-grandense. Mas a “novíssima” geração está lendo Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll, Moacyr Scliar e outros. São autores que tiveram ressonância nacional pela qualidade de seus textos. Mas também porque seus temas são possíveis de ser lidos em qualquer lugar do mundo. São mais compreensíveis para os gaúchos mais jovens.

Iluminar criticamente a construção de mitos pode incomodar certos grupos políticos. Assis contesta as bases da chamada identidade gaúcha, que ele considera um “constructo intelectual” resistente à modernidade.

Pesquisa feita pela UFRGS, Assembléia Legislativa e PUC-RS tentou objetivar a tal identidade. Quanto ao temperamento, a pesquisa constatou que os gaúchos se acham criativos (76%), inteligentes (74,7%) e brilhantes (66,5%). Quanto ao caráter, responsáveis (81,5%), lutadores (80,9%), honestos (76,6%) e confiáveis (75,5%). Até aí, nada de mais. Os gaúchos são vistos - e se vêem - como pavões.


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              A novidade da pesquisa adentra também o campo visual, não? Se não me engano, 84% dos homens se consideraram “bonitos”.

              “Somos apenas o máximo.” E quem é o máximo não precisa mudar nada, evidentemente. A literatura tem grande responsabilidade nesse constructo intelectual.

Em meados do século XIX, o movimento denominado Parte- non Literário criou descrições para personagens gaúchos (homem e mulher, mas principalmente homem) e os batizou, miticamente, de Centauro dos Pampas.

              É exatamente o homem que na pesquisa recente se declarou valente, honesto, bonito etc.

Na crônica “Uma sessão histórica no Partenon Literário”, da coletânea Anais da Província-Boi (1997), Assis recria a cena da assembléia que deliberou sobre o que é ser gaúcho. Pela quantidade de sugestões de nomes expressa na crônica - Orfeu das Planícies, Ulisses da Campanha, Aquiles de Bombacha, Garanhão de Esporas -, a reunião deve ter sido bastante inspiradora.

-              Não podemos esquecer que a vida intelectual rio-grandense surgiu no ápice do Romantismo, e isso não deixou de ter conseqüências. Os parâmetros culturais gaúchos são dados por romances de ficção.

O tradicionalismo é forte no Rio Grande do Sul e encontra amparo no Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), ao qual se vinculam os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) espalhados pelo Brasil e presentes até em outros países, como França, Estados Unidos e Japão.

-              Como os CTGs se sustentam?

-              Sustentam-se com as contribuições de seus associados; mas não se pode esquecer que normalmente contam com o beneplácito dos governos. Os tradicionalistas do MTG, via de regra, sempre “fecharam” com os sucessivos governos estaduais, e isso sempre teve seu retorno.

A urbanização, ainda que tardia, alterou a oposição entre tradicionais e progressistas. Elites da grande propriedade de ter-


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ras perderam poder. Hoje, o estado tem a maior classe média do país, segundo o IBGE.

- É um dado importante, definidor dos caminhos políticos.

Como a Itália, o Rio Grande do Sul conta com um norte, acima da capital Porto Alegre, industrializado, de agricultura mini-fundiária e urbanização intensiva. Diferentemente, na metade sul predomina a grande propriedade e a pecuária.

As terras do extremo sul do Brasil, inóspitas, desertas e batidas pelo minuano, foram das últimas ocupadas. Quando pisou nelas o primeiro colonizador, em 1737, o mosteiro de São Bento, na Bahia, já contava dois séculos. Mais jovem que o Rio Grande do Sul, talvez só a Austrália.

- Nosso escasso tempo de vida não possibilitou o surgimento de uma cultura popular, como a tem, por exemplo, o Nordeste. Não considero cultura popular essas formas de dança e canto que se praticam em certos círculos daqui, baseados em corretas ou fantasiosas pesquisas folclóricas. Me parecem um ranço passadista brutal.

Todo o imaginário do extremo Sul se baseia (ou se baseava) na figura masculina. Ela é tão forte que Anita Garibaldi, “heroína do Rio Grande”, mulher de Giuseppe Garibaldi, não se celebrizou por suas qualidades de mulher, mas por ter sido uma mulher com conduta de homem. Até as colônias européias (as de italianos e alemães, principalmente) aderiram a um imaginário feito de boas, bombachas, guaiacas, lenços para homens; e, para as mulheres, vestidos de prenda plissados, tranças e flores no cabelo, entre outras “pilchas”.

 

*

A tricentenária família Assis descende de imigrantes do arquipélago de Açores, Portugal. Por volta de 1750, Francisco de Assis, pobre e iletrado, partiu de Açores para se tornar estancieiro nos pampas. A trilogia Um castelo no pampa, composta pelos volumes Perversas famílias (1992), Pedra da memória (1993) e Os senhores do século (1994), conjuga uma fração da história da família de Luiz Antonio com a do estado.


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O título da trilogia evoca certo realismo fantástico, personagens voadores, imortais, anos de chuvisqueiro incessante, animais de parte com o demônio e outros recursos utilizados por autores inspirados no Surrealismo.

O castelo da trilogia de Assis Brasil, porém, não é ficção. Ele existe. Joaquim Francisco de Assis Brasil, abolicionista, propagandista republicano e pecuarista, ergueu-o em 1906, em Pedras Altas, entre Bagé e Pelotas.

Na trilogia, o castelo é o ponto de contraste para o retrato cruel de um Rio Grande semibárbaro, de oligarquias pecuaristas truculentas e revolucionários degoladores.

- A primeira lareira do Rio Grande e o primeiro encanamento de água quente surgiram no castelo de meus descendentes. Confortos que contrastavam com a propalada tradição rústica daqui.

Em Perversas famílias, Assis descreve o castelo (que simboliza a Europa, a repressão, o encerramento) no pampa (o Novo Mundo, a amplidão, a liberdade):

 

Um castelo republicano, erguido em meio ao pampa gaúcho, de duas torres e ameias, que se avistava ao longe como uma sombra medieval e cuja tenaz persistência em aplastar os incrédulos se corporificava em sua estatura elevada, prodígio arquitetônico da orgulhosa cantaria portuguesa talhada aos pés seculares de Alcobaça e trazido em um navio com lastro pétreo de ladrilhos e azulejos e aqui posta em seus demarcados lugares por um artista francês.

 

No castelo, tombado pelo patrimônio histórico, hoje funciona uma fábrica de laticínios. Os herdeiros sonham transformá-lo num museu. O castelo possui sala para concertos, biblioteca com 25 mil exemplares, mesa de centro em prata maciça feita pelo prateiro de Napoleão Bonaparte, louças inglesas e um mobiliário de grande valor. (O próprio Assis coleciona peças de arte sacra dos séculos XVII e XVIII, mantidas em seu apartamento de fim de semana em Gramado.)

A rotina de Assis parece bastante calma e previsível. Ele é do departamento de pós-graduação em letras da PUC-RS, onde desde


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1985 promove oficinas de criação literária que já resultaram em dezenas de volumes de antologias.

Casado com Valesca e pai de Lúcia, Assis puxou da terra a raiz mais profunda de sua existência. Especializou-se em literatura açoriana pós-Revolução dos Cravos (1975) por paixão. Em 1989, retornou ao arquipélago de onde seus ascendentes partiram. Emocionou-se.

Aterrissou em Ponta Delgada, capital da ilha de São Miguel, e foi direto para o estúdio de um programa da TV portuguesa RTP.

- Soube, então, que seria uma entrevista de uma hora num país que só tem aquele canal. E entendi por que tanta gente me cumprimentou na rua depois.

Já recebeu convites “surpreendentes” dos departamentos de literatura de língua portuguesa de duas universidades americanas - a da Califórnia, em Berkeley, e a Brown, em Providence, Rhode Island.

- Por que “surpreendentes”?

- Por incrível que pareça, o convite partira de um professor pernambucano e de outro, português. “Estão certos de que sou eu?”, perguntei, intrigado.

-Que outro episódio o surpreendeu ultimamente?

- Um telefonema da Ediciones Akal [editora de Madri] dizendo que vai publicar em espanhol o meu Concierto campesino.

 

*

Estivemos o tempo todo em uma sala de aulas. Conversáramos sem interrupções até que uma marretada na parede nos chamou a atenção tardiamente. Os operários encarregados de uma mega-reforma neste prédio da PUC-RS haviam martelado horas a fio mas nem eu nem Assis nos déramos conta.

Em vez de nos desgastarmos com questões sobre os reconhecimentos da crítica do “centrão”, Assis sugeriu tomarmos outro café. Daí, com o pretexto do barulho das marretas, me convidou para um tour por Porto Alegre, enquanto eu aguardava a hora de voltar ao Aeroporto Salgado Filho. Sob um crepúsculo belíssimo, a temperatura não passava dos 10°C, e era maio.


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- Não me pareceu que conhece sua capital menos do que Lisboa, como você gosta de  dizer. - Falei, quando Assis estaciono carro.

- É um pouco de exagero meu. O fato é que as ruas de Lisboa me remetem a um Brasil sem maldades. Os portugueses ainda se permitem observar as coisas passarem. Existe uma tendência exagerada de tentar diminuir a importância da colonização portuguesa. Ela teve seu legado predatório, sim. Em compensação, Portugal realizou o “mistério” de promover a unidade linguística do Brasil, e a capacidade de entender e aceitar nossas próprias diferenças.

- Também nos trouxeram burocracia, dificuldade de adaptações a códigos e regulamentos.

- Sim, mas nos deram o sentido do desfrute da vida, de dedicarmos afeto uns aos outros.

Todo povo em cada canto do mundo convive com simbologias e mitos. Os melhores discernimentos surgem com a primeira oportunidade de intercâmbio cultural. Um ano depois da entrevista recebi em casa um envelope remetido por Assis Brasil contendo um exemplar de O pintor de retratos (2001), drama individual ambientado no tempo da Revolução Federalista de 1893. Nessa obra, o “problema” da identidade gaúcha está ausente.


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O BRASIL DOS UBALDOS

 

- (Quinhentos anos? Você veio aqui pra falar dos quinhentos anos? Essa não!

- Bem, poderia ser um dos assuntos, afinal, a Carta de Pero Vaz de Caminha ainda é a certidão de nascimento do Brasil...

- Primeiramente, não temos quinhentos anos.

- Menos ou mais?

- Olhe, meu amigo, preciso trabalhar; estou cada vez mais sem saco para entrevistas.

- Por que deixou a gente [eu e o fotógrafo carioca Antônio Batalha] chegar até aqui, então?

- Você insistiu muito...

- O que mais te incomoda em entrevistas?

- Os caras fazerem as mesmas perguntas de sempre, e o modo como me folclorizam.

- Pode nos mandar embora daqui, se quiser.

- Mas sou um sujeito que não sabe dizer não. Vamos, vamos começar. Diga o que pretende.

No escritório de seu apartamento no Leblon, Rio, entre incontáveis ações tabagísticas, João Ubaldo estava nitidamente entediado. Sua paciência andava por um fio. O assédio de aspirantes a escritores, formandos do curso de letras, embaixadores culturais,


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entrevistadores, profusões de e-mails de leitores, não-leitores e intercambiadores de abobrinhas têm-lhe aborrecido como nunca.

A tudo isso soma-se agora outro assunto em voga, diante do qual o autor se arrepia todo: as comemorações dos quinhentos anos do Brasil e as especulações em torno da identidade nacional.  João Ubaldo costuma ser enfático quanto a isso. Certa vez, durante seminário na Alemanha, surgiu o (falso) problema da identidade brasileira.

- E aquela conversa fiada não acabava. Quando chegou minha vez, eu disse: “No Brasil não temos esse problema”.

Os interlocutores - alemães, em sua maioria - devem ter ficado intrigados.

- Nós temos isso aqui, eu disse, mostrando meu RG. Acabou o debate.

Mas não as discussões acadêmicas, jornalísticas, especulativas, botequinescas em torno de seu livro maior, Viva o povo brasileiro (1984). Parece unânime que nesse romance João Ubaldo tenha tentado compreender a formação do Brasil.

Viva o povo brasileiro é uma espécie de distintivo ficcional desse processo formador. Valendo-se do recurso fantástico de uma alma que reencarna em habitantes de Itaparica, Bahia - do tempo da colonização da ilha pelos holandeses (1647) até a ditadura militar, já por volta do final do governo Geisel (1977) João Ubaldo desfia em estilo barroco vários momentos decisivos da história do Brasil - Independência, Guerra do Paraguai, Proclamação da República, Estado Novo etc.

- Claro que não planejei tudo isso. Se pensasse nessas coisas enquanto escrevo ficaria ainda mais louco.

Os antropólogos Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro escreveram que no Brasil plasmaram-se historicamente diversos modos rústicos de brasileiros identificáveis: sertanejos do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc. Todos marcados muito mais pelas semelhanças como brasileiros (o idioma é uma delas) do que


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pelas diferenças decorrentes de adaptações regionais ou funcionais, de miscigenação ou aculturação que emprestam entre si.

- Sociólogos e educadores americanos já reconhecem o black english como língua, não mais dialeto ou linguagem de rua.

- Acha que temos uma “língua portuguesa negra” ou algo assim?

- Não. Até porque não se faz necessário. Todos por aqui falam o português, sintoma de unidade, por mais precária. O Brasil é o autêntico melting pot do mundo. Ponto.

Multitraduzido, marco da literatura brasileira dos anos de 1980, Viva o povo funciona como paródia. Paródia que começa em Homero e passa pelas razões que levaram o autor a ter enfrentado uma lavra de 672 páginas. Dois motivos o levaram à empreitada. Ele mesmo os enumera, em meio a impropérios emitidos à média de um para cada dez vocábulos castos, incluídas as preposições e conjunções:

- Primeiro, eu adorava meu avô paterno, João, que era português [seu primeiro nome vem daí; o segundo nome, Ubaldo, homenageia o avô materno]. Ele dizia que livro que se respeita fica em pé sozinho, numa gozação bem-humorada dos livros do meu pai sobre Direito e temas afins. Segundo, que lá pelo começo dos anos 80, o então editor da Nova Fronteira, Pedro Paulo de Sena Madureira, comentou que estava incomodado com esses livros fininhos, que se lêem na ponte aérea. Então...

*

O cidadão do mundo João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro, sexagenário, aportado desde 1992 no apartamento comprado de Caetano Veloso, professa uma crença mordaz pelo Brasil e por si mesmo. Trata-se de um sujeito esperançoso também, particularidade sua e fundamental para o seu viver. Mas esperança se refere essencialmente ao futuro; quando calcada demais no passado, torna-se patologia. Para ele, o sonho do futuro (ou de uma prosperidade equânime) parece estar virando desilusão.

Alguma semelhança com os alemães, por exemplo, com os quais João Ubaldo teve de se entender no tête-à-tête, como escri-


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tor residente da Deutsch Akademischer Austauschdienst? Não, os alemães alimentam um número excessivo de certezas sobre esta vida incerta. São o oposto dos brasileiros, a maior parte dos quais sem a menor idéia do que estará fazendo na próxima hora.

Como os alemães podem marcar as coisas com tanta precisão e antecedência?, pergunta em Um brasileiro em Berlim (1993). Para os teutônicos, o futuro é uma questão de planos, estratégias, organogramas, metas, estatísticas, cálculos.

- De qualquer forma, reconheço que o inverso da esperança seria, no nosso caso, uma prova de cinismo ou de loucura absoluta.

Para fins biográficos, Ubaldo é brasileiro, baiano, ilhéu, leblonense, vascaíno, verborrágico, evasivo, cético, crédulo, bonachão, desancador das idiossincrasias européias, barroco, arrítmico cardíaco, mantenedor de uma relação ambígua com garrafas de White Label, fumante desbragado.

Amanhã, todas essas verdades podem ser mentiras. A irreverência contribuiu para que João se tornasse personagem de si mesmo, lendário, e a contragosto. Ainda bem que se assume como cidadão composto. Compõe-se de dois (para mim, são vários) ubaldos.

Há o Grande Ubaldo, vértice do escritor - o sujeito simpático despido de culpas e preconceitos e aberto a novas experiências. No reverso dessa “aura vital” reside o Pequeno Ubaldo, espécie de inquisidor.

- Pequeno Ubaldo é um mesquinho acusatório, que me vigia o tempo todo. Determina que tenho que escrever três laudas cheias por dia sem poder contar amanhã com eventuais saldos de hoje. Mas é o que faço quando estou escrevendo um livro: três laudas por dia.

Mas nenhum dos ubaldos demonstra verve filosófica. Sua retórica foge ao convencional.

- Só sou capaz de filosofias baratas.

Que tal esta?

 

O que existiu realmente existiu? Algo importa além do presente? Há realmente uma História, somos de fato herdeiros de alguma coisa, ou


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somos eternos construtores daquilo que a memória finge preservar, mas apenas refaz, conforme suas variadas conveniências, a cada instante em que vivemos?

 

Pequeno Ubaldo acredita que o Brasil romperá o século XXI com pós-doutorado em pelo menos três atividades inimagináveis nos tempos do caboclo Capiroba, personagem antropófago de Viva o povo brasileiro: futebol, esporte inventado pelos ingleses; novela televisiva, aperfeiçoada dos mexicanos; e Carnaval inspirado em bailes de máscaras.

- Somos colonizados, ora essa. Se fôssemos originais, teríamos continuado índios. Veja Heitor Villa-Lobos, o grande compositor brasileiro, ou colombiano, ou argentino, ou boliviano (para os caras do G-7 é tudo a mesma coisa), ele se divertia na Europa contando como se comia gente no Brasil.

Já Grande Ubaldo foi capaz de criar cenas de antropofagia explícita em Viva o povo, debochando da moral e cívica da geração que lhe sucedeu. Lembremos do caboclo Capiroba dando uma porretada na cabeça de um padre que tentava amarrá-lo para borrifar-lhe água benta. Capiroba churrasqueou e charqueou o padre.

 

... e charqueou bem charqueado em belas mantas rosadas, que estendeu no varal para pegar sol. Dos miúdos preparou ensopado, moqueca de miolo bem temperada na pimenta, buchada com abóbora, espetinho de coração com aipim, farofinha de tutano [...], costela assada, rinzinho amolecido no leite de coco mais mamão [...]

 

Itaparica, onde ubaldos nascem, maior ilha marítima do Brasil (porque Marajó é fluvial), é o cenário do banquete. Ela foi também campo de batalhas ameríndias e grandes farras antropofágicas.  Numa delas, os tupinambás devoraram Francisco Pereira Coutinho, donatário da Capitania da Bahia de Todos os Santos. Itaparica foi devastada, no século XVII, pela infantaria holandesa comandada por Van Schkoppe.


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Mas nem os índios nem o caboclo Capiroba comiam covardes. Os rituais de antropofagia tinham um caráter que Darcy Ribeiro chama de “cultural e co-participado”. Era imperativo capturar guerreiros que seriam sacrificados dentro do próprio grupo tupi, por exemplo.

Por compartilharem o mesmo conjunto de valores, os guerreiros aprisionados eram altivos e dialogavam soberbamente com os que se preparavam para devorá-lo. Um dos primeiros visitantes do Brasil, o alemão Hans Staden, foi levado três vezes a cerimônias de antropofagia e três vezes os índios se recusaram a comêlo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência.

 

*

Pequeno Ubaldo pode não se dar conta, ou até mesmo mostrar legítimo desinteresse pelas filigranas de sua gênese ficcional, mas é evidente em Viva o povo brasileiro que a História foi objeto de reconstituição intensiva. Ou seja, não existe a verdade, apenas histórias. E Grande Ubaldo sabe narrá-las com o exagero dos bons.

Em Berlim, onde morou entre 1990 e 1991, João Ubaldo brincou novamente com a história de que os brasileiros são antropófagos.  Uma moça ficou morrendo de medo dele. Já na Holanda adoraram o trecho do livro em que ele diz que a carne de holandês é melhor que a dos portugueses.

- A dos portugueses é um pouco gordurosa.

- Por que o cidadão médio dos países mais desenvolvidos ainda suspeita que o Brasil é uma grande selva?

- Não sei. Mas é falar em Brasil e eles evocam índios e Amazônia.  E ditadores militares cobertos de medalhas, gritando ordens a pelotões de fuzilamento em espanhol de acentos bárbaros e telefonando para bancos suíços. Os alemães não acreditaram que só vi dois índios na vida. Um foi o cacique Mário Juruna, ex-deputado federal. Alguns me consideraram um impostor.

- Mas não conhecer a Amazônia é o pior dos pecados, mais grave que a luxúria.


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- É como se não pudéssemos ter filosofia, balé moderno, nada que não exprimisse o exótico.

Grande e Pequeno ubaldos em geral se incomodam com os porquês do fascínio que seus livros despertam nos europeus.

- Acho que gostam da minha carmen-mirandice.

A edição francesa de Vive le peuple brésilien, por exemplo, traz na capa índios com lanças e corpos pintados nas cores azul, vermelha e branca, numa simetria que em muito remete à bandeira dos Estados Unidos. Na Suécia, o livro (acho dispensável fornecer a versão sueca para o título) vendeu mais de 100 mil exemplares. A capa: um rosto metade onça, metade mulher e olhos verdes.

- Enche o saco, não? Mas, como diz Millôr, FHC será um ótimo ex-presidente.

Conforme o ponto de vista, a imagem brasileira lá fora tem um reverso favorável. É a que mais se adapta aos que sonham descer os trópicos, esbaldar-se sob um sol interminável, tomar drinques com os ingredientes dos arranjos na cabeça de Carmem Miranda, anoitecer e amanhecer entre mulatas sem padrão de conduta. Atingir a porção sul da linha do equador significa assumir o estilo libertino reinante no Brasil. Se for Carnaval então...

- Os homens europeus também vêm ao Brasil com medo da imagem que as brasileiras terão de seus países. Acham que a masculinidade será posta em dúvida se não iniciarem os trabalhos no bar mesmo, na chegada do primeiro martíni.

Infelizes trópicos (sic) onde não existe nudez sem malícia como na Alemanha, onde João Ubaldo testemunhou o espetáculo “espantoso” de cidadãos nus no Halensee em dia de sol e casais homossexuais se beijando impunemente. O fato não deveria ter repercussões em um sujeito capaz de uma obra “pecaminosa” como A casa dos budas ditosos (1999), sobre a luxúria.

- Em Portugal, três grandes “superfícies” (como lá chamam as grandes cadeias de lojas) proibiram o livro e não voltaram atrás. Ele vendeu muito bem, apesar de tudo, mas em outras lojas e livrarias.


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Na extremidade norte da Kurfürsttendamm, ou Ku’damm, uma das avenidas mais conhecidas de Berlim, na rua Storkwinkel, número 12, João Ubaldo esteve perto de tudo, teve tudo ao seu redor, como hoje, no Baixo Leblon. Instalou-se naquela esquina logo após a queda do Muro. Em passado mais remoto, Grande Ubaldo tentou ser comunista, Pequeno Ubaldo não permitiu.

- Questão de indisciplina dogmática.

Na época da queda do Muro, os visitantes do Leste se aglomeravam nas ruas, lojas, estações e praças como crianças deslumbradas.  A vida, a dos berlinenses, especialmente, tornou-se caótica para os padrões alemães.

- Em vez de visitadas, as pessoas se sentiam invadidas.

Em Berlim, o outro representava o intruso, cuja fala, os modos e as fraquezas eram inaceitáveis. A solidariedade, nessas horas, é pura retórica. O que estava acontecendo não era o que tanto queriam? Queriam mesmo? O fato é que ser estrangeiro é uma condição que envolve gradações.

- Fora do Brasil, não apenas sou estrangeiro como tenho cara de estrangeiro. Na França, me misturam com os árabes. Nos Estados Unidos, sou hispânico. Na Alemanha, passo por turco, e por aí vai.

 

*

Sua estrangeirice começou há mais tempo, na verdade, e dentro de seu próprio território. Com dois meses de vida, a família de João Ubaldo se mudou primeiro para o interior de Sergipe. Seu pai foi subindo na carreira de magistrado que então o ocupava e anos depois foram parar em Aracaju. Quando Ubaldo começava a se sentir sergipano, teve de voltar para a Bahia.

- Sempre demarco meu território. Sair dele é traumatizante.

Em Salvador, o pai implacável mandou pequenino Ubaldo para um desses colégios tradicionais, de classe alta - o Colégio Sofia Costa Pinto, em Salvador. O uniforme do Sofia era de calças compridas.

- Nas primeiras vezes que me mandaram para o Sofia, meteram-me em paletó, gravata, calça curta e meia até o joelho. Era


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patético. Nem nos colégios do interior de Sergipe os garotos se vestiam assim.

Fora leitura, estudo de idiomas e outros, o pai não lhe permitia quase nada. Grande Ubaldo conseguia, contudo, jogar futebol como zagueiro recuado e às vezes ponta-direita, posição que formalmente não existe mais no futebol moderno.

- Meu pai não permitia que eu trancasse portas, exceto a do banheiro. Era o único lugar em que eu podia me trancar. Um dia ele me pegou falando baixinho no telefone pra ninguém me ouvir. E disse, aos berros: “Isso não é jeito de namorar, Ubaldo!”.

Em 1964, o aspirante a escritor recebeu uma bolsa de estudos da embaixada americana e desembarcou na Califórnia, onde fez mestrado em administração pública e ciência política. Chegou a dar aulas de ciência política na Universidade Federal da Bahia e até publicou um livro chamado Política (1981). Retornou à Bahia vindo de Los Angeles. Foi quando percebeu que havia perdido a sua turma. Todos tinham ido “fazer o Rio de Janeiro”.

Gláuber Rocha e Jorge Amado, amigos e padrinhos literários de João Ubaldo, que estava “ficando desajustado na Bahia, longe da companhia dos amigos”, conseguiram para o pupilo outra bolsa de estudos, desta vez da Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa.

- Não dava pra pagar nem o aluguel.

Nesse período, então, editou com o jornalista Tarso de Castro a revista Careta, o que lhe permitiu viver modestamente em Portugal com a esposa Berenice.

- Eu editava por telefone, e Portugal não tinha ligação DDI, na época. Era um inferno conseguir ligação.

Entre a volta de Portugal e 1983, instalou-se no Rio a duras penas, assumidamente fiado em Deus, a ponto de um amigo dizer-lhe: “Ô, João, você num acha que tá fiado demais em Deus, não?”.

- Eu tava naquela situação do “ai de quem precisa”. Ou seja, quem precisa não encontra ajuda.


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João Ubaldo acabou desembarcando de mala e cuia na casa de Itaparica, onde nasceu e onde seus avós maternos moraram até a morte. Nela, pôde resgatar a tão adorada combinação bermuda-sandália-camiseta; não pagar aluguel; ter escola barata para os filhos; e ainda poder, se precisasse, apanhar uns mariscos frescos ele mesmo. Nesse tempo, “viveu barato”, como se dizia. Só voltaria a morar no Rio depois da estada em Berlim, no tal apartamento comprado de Caetano Veloso, na rua General Urquisa, Leblon, o local do nosso encontro.

- Sente falta das “leituras públicas” na Alemanha?

- Claro que não. Imagine o sujeito chegar do trabalho e, em vez de fazer algo sensato, como tomar um drinque e convidar a vizinha para ouvir uns disquinhos, preferir uma leitura. Isso é inconcebível para nós brasileiros, exceto sob a mira de uma metralhadora.

Pois os alemães fazem isso, ou fizeram apenas para impressionar Grande Ubaldo, que detesta previsões concretas sobre o Brasil, muito menos aquelas dos relatórios econômicos extensos redigidos por consultorias internacionais. E agora tem esse negócio de risco-Brasil, número criado por uma meia dúzia de caras.

- Eles querem saber se somos de alto ou baixo risco. Ora, se se preocupam com isso é porque somos importantes, ainda que na forma de mercado ou mercadoria. Olhe, essas estatísticas não têm a menor confiabilidade.

Seriam as estatísticas dessas consultorias internacionais equivalentes à “fúria asfaltante” do senador Antônio Carlos Magalhães, criticada pelo conterrâneo João Ubaldo, “ilustre integrante da esquerda democrática”? O ex-governador e ex-prefeito baiano recapeou mesmo seu estado e sua capital. No Brasil dos ubaldos os fins justificam os meios.

 

*

Com ficcionistas é diferente. Um folclore vai levando a outro e, se não se toma cuidado, os autores morrem personagens de si mesmos. De folclores, Pequeno Ubaldo está cheio. Seu alemão, por exemplo, é “oligofrênico”, diz.


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-           Não falo “chonga” [bulhufas] de alemão, como dizem por aí. Inglês, sim, sei mais do que a maioria dos americanos.

Por folclore ou por competência literária - chega um momento em que não há mais como saber ao certo -, o assédio em torno dos ubaldos é imenso.

-           São convites para ser patrono em formatura, dizer tolices em palestras para platéias bocejantes e outras aporrinhações. Mas, como lhe disse, tenho o problema de não saber dizer não.

Ele, que há pouco diagnosticou uma arritmia cardíaca (ou “fibrilação atrial”) e anda no vaivém com o álcool, recusou-se a produzir um reply automático e padronizado em seu programa de correio-eletrônico. Prefere algo como um “software filtrante”, ao menos para que pentelhos não consigam enviar-lhe arquivos com originais de romances anexos, contos ou crônicas cujo download pode levar horas.

-           O que pretendem?

-           Tudo, menos permitir que eu trabalhe.

-           No Brasil, as pessoas em geral não consideram escrever uma profissão...

-           Verdade. Minha própria família [João é pai de quatro filhos: Emilia e Manuela, do casamento com a historiadora Mônica Roters, e Bento e Francisca, com Berenice Batella, fisioterapeuta] suspeita que não trabalho porra nenhuma.

Com a pressão da chegada dos quinhentos anos, João Ubaldo tem recebido convites estranhos, como participar de gravações em zona rural, em meio a vacas e cavalos.

- Adoro ar-condicionado, respondo.

Há quem pense que Grande Ubaldo seja também capaz de navegar e então certos encontros memoráveis poderiam ocorrer dentro de caravelas - relembrando Pedro Álvares Cabral, entende?

-           Repito que não sei a diferença entre bombordo e estibordo. Se preciso, consulto alguém.

Os ubaldos e suas obras têm sido alvo de desvarios que misturam barões malvados, escravas astutas, sagas luso-tropicalistas, canibais, paisagens exuberantes e histórias, muitas histórias


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que circulam por botecos cariocas e se imortalizam como o próprio  autor - imortal, pelo menos, segundo a Academia Brasileira de Letras.

- Porra, como sou escroto. Nem perguntei se aceitam uma água ou um cafezinho. Agora é tarde, não?

Pequeno Ubaldo já estava louco para que déssemos o fora.

P.S.: “Com sinceridade, mas fraternalmente, não gosto muito do perfil. Acho até que você contribuiu para minha folclorização. Mas ele é obra sua, não minha”, escreveu-me João Ubaldo por e-mail em setembro de 2002. “Talvez você tenha razão”, respondi. “Teria sido mais original eu mostrar, por exemplo, ‘o Ubaldo que está por trás do mito’. Confesso que era o que eu pretendia. Mas, quando comecei a escrever, notei que não conseguira encaminha? - nossa conversa para esse lado.”

Enquanto ouvia e observava João Ubaldo, eu pensava em como escapar da armadilha - na qual muitos jornalistas caíram - de retratá-lo como um personagem de si mesmo. A maioria dos textos que li mostravam-no como “um falastrão despretensioso”. Sua suposta “carmem-mirandice” não sobressaiu na nossa entrevista, é verdade. E talvez aquele fastio demonstrado no início da conversa não passasse de uma estratégia de autopreservação ou um pedido para que eu o visse com outros olhos.

O personagem em grande parte é obra do repórter, como bem disse João Ubaldo. Mas o próprio personagem “inventa-se” conforme as circunstâncias - a data, a fase, o humor etc. Qualquer personalidade pública também é obra de si mesma, claro, e pode acontecer de o repórter se sentir induzido ao erro. Ossos do ofício.


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MR. INVISÍVEL DO BROOKLYN

 

O dinheiro pode calar megafones, ideais e sonhos. Sabemos que a arte e o jornalismo cultural também não escapam da performance comercial. Bilheterias e listas de best-sellers são o principal termômetro do sucesso. A percepção de que o dinheiro é praticamente o padrão de medida para tudo foi muito importante na formação do escritor americano Paul Auster, 55 anos, autor de Trilogia de Nova York (1985) e diretor do filme O mistério de Lulu (1997). Foi o que lhe deu certo senso de rebeldia contra a face insensível do país mais consumista do planeta.

- O dinheiro é sempre mais identificável por sua ausência que por sua presença. Acho que ele é útil apenas para poder nos ajudar a não pensar nele - diz.

Os problemas financeiros de Auster foram gritantes principalmente dos seus vinte anos, quando resolveu entrar para a marinha mercante como marujo em um navio petroleiro, até por volta dos 32, quando seu pai faleceu. Antes disso grana era uma questão filosófica.

Paul vem de uma típica família pequena de classe média americana. Uma família única e apenas aparentemente comum, como a maioria das famílias. Seu pai, Samuel Auster, era um promissor técnico em radiocomunicação que trabalhou no laboratório de Thomas Edison em Menlo Park, Nova Jersey, em um úni-


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co dia de 1929. Consta que foi dispensado no dia seguinte, quando Edison soube que Sam era judeu.

Em seguida a Bolsa de Nova York quebrou, mas o pai de Paul tinha alguma poupança e aplicou-a numa modesta loja de componentes eletrônicos em Newark, que acabou sendo transformada depois em uma loja de mobílias. Sam Auster vivia à procura de negócios rentáveis. Juntou boas quantias como corretor de imóveis.

Apesar de tudo, até 1947, ano em que Paul nasceu, a situação de Sam era instável para os padrões americanos. Nem Paul nem sua única irmã (três anos mais jovem que ele) conheceram fome, frio, ameaças ou ignorâncias. Tampouco passaram as necessidades da maioria das famílias brasileiras na mesma época.

O que transformou a visão de Paul com relação a dinheiro, e que o forçou a ir à luta sozinho, a princípio sem sucesso, foi o modo como seus pais lidavam com as próprias demandas. Sam era pão-duro, paranoico com crashs e recessões. Antes de imigrar para os Estados Unidos, passara maus pedaços em Stanislav, no Leste-Europeu. A lembrança dos tempos de pobreza o perturbaria durante toda a vida.

Já a mãe de Paul, Queenie, era esbanjadora. Ela achava que devia celebrar o desaperto comprando objetos de todo tipo, enchendo vários carrinhos de supermercado. “Para ela, entrar numa loja era dar início a um processo alquímico que atribuía à caixa registradora uma série de propriedades mágicas e transformadoras”, escreveu o filho em Da mão para a boca - crônica de um fracasso inicial (1996).

- A tragédia da coisa é que os dois eram pessoas boas. Atenciosas, honestas, trabalhadoras. Fora esse único campo de batalha, pareciam se dar bastante bem.

- Deve ser difícil para uma criança compreender pais com uma relação tão ambígua com dinheiro. De um lado, o desejo intenso de ganhá-lo; do outro, uma recusa persistente em desfrutá-lo.  Como você hoje encara aquele duelo?

- Nunca consegui entender como algo tão sem importância podia causar tanta discórdia. É claro que dinheiro nunca é


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apenas dinheiro. É sempre outra coisa, algo maior, e é sempre ele que diz a última palavra.

- Seus pais foram felizes juntos?

- Não, e minha mãe levou muito tempo para reconhecer o engano que cometera. Quando eu tinha quinze anos e a minha irmã doze, eles se divorciaram.

- Você passou muitos apertos financeiros depois disso, em parte por causa das opções que fez, tentando se virar sozinho, apartado. Como estão as coisas hoje?

- Alguém certa vez disse que as histórias só ocorrem com aqueles que são capazes de contá-las. Do mesmo modo, quem sabe, as experiências se apresentam àqueles que são capazes de vivê-las. Nos últimos dez anos tenho sido capaz de sustentar meu trabalho e minha família. Mas nem tudo está resolvido.

 

*

Por volta dos vinte anos, portanto, Auster decidiu ganhar a vida de um modo que lhe permitisse escrever. Em 1971, aos 23, mudou-se para a França com planos de ficar um ano. Ficou quase quatro. Foi o caminho encontrado para estar longe de seu país num momento particularmente complicado, em que sociedade e governo se desentendiam a céu aberto.

- Os Estados Unidos viviam a Guerra do Vietnã. Eu estava muito contaminado politicamente e não conseguia escrever. Então achei que a melhor maneira de me concentrar seria encontrando um espaço para respirar.

Na França, trabalhou como jardineiro, tradutor francês-inglês, revisor de catálogo de livraria, ghostwriter e telefonista noturno na sucursal do The New York Times (em Paris), entre outras atividades. Um período de grandes dificuldades. Entre uma turbulência e outra, tentava escrever poemas, sua maior paixão na época.

A obstinação pela literatura já o estava transformando em um destituído na Europa quando surgiu a imperdível oportunidade de emprego como caseiro de uma fazenda na Provence, o que lhe proporcionaria uma “renda minúscula”, como ele conta. O


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mais interessante do novo emprego, entretanto, era incluir moradia  gratuita.

- Isso era fundamental. Mas também acabou chegando o dia em que eu e minha namorada não tínhamos praticamente nada pra comer. Tudo o que pudemos encontrar na fazenda foi uma torta crocante pré-pronta e um saco de cebolas. A torta ficou muito saborosa, a melhor que já comemos, exceto pelo fato de que não estava suficientemente quente. Então nós decidimos aquecer a torta de cebola um pouco mais. Quando a tiramos do forno, estava queimada. Foram horas de desespero, pois já estávamos no nosso limite. Então, de forma totalmente inesperada, apareceu um sujeito que de vez em quando se hospedava na fazenda.  Ele nos repassou algum dinheiro e pudemos fazer uma refeição decente.

Paris representou uma virada na vida de Paul. Enquanto tentava escrever poemas e ensaios literários, submetia-se a ligações “degradantes, algumas humilhantes” com pessoas apenas para poder adquirir o mínimo necessário para a sobrevivência. A França não seria sua residência, nem nenhum outro país que não os Estados Unidos. Talvez nem mesmo outra cidade que não Nova York ou outro bairro que não o Brooklyn, onde se instalou em 1980, depois da morte do pai, e não saiu mais.

Mesmo tendo nascido em Newark - cidade poluída, violenta e feia a trinta minutos de trem de Manhattan Auster se dedica a Nova York como James Joyce a Dublin. Na Trilogia de Nova York a vida anônima na megalópole, acrescida de modos diferentes de vida entre Manhattan e Brooklyn, torna seus personagens seres cada vez mais isolados e em busca de uma identidade.

Mas o caldeirão multicultural nova-iorquino, tão presente na Trilogia, não é onipresente em sua obra. Muitos de seus livros - como No país das últimas coisas (1987), Música do acaso (1990) e Mr. Vertigo (1994) - nem sequer transitam pela turística Brooklyn Bridge, uma das vias de ligação de sua casa a Manhattan.

O Brooklyn, com 2,5 milhões de habitantes, é um dos cinco grandes distritos que compõem a Grande Maçã. Para Auster, o


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mundo passa por Manhattan mas mora no Brooklyn, o verdadeiro lugar de todas as raças, todas as etnias e todas as religiões.

No Brooklyn, caribenhos e russos, judeus e italianos, árabes e haitianos cruzam diariamente as fronteiras dos bairros residenciais de Brooklyn Heights e Park Slope - “o outro Brooklyn”, como Paul chama a região. Em sua casa de tijolos marrons aparentes, moram Siri Hustvedt, sua segunda mulher, e a filha Sophie.

Park Slope ladeia o verdejante Prospect Park. O bairro acolhe inúmeras edificações em estilo vitoriano, ornamentadas por torres do século XIX, arcadas neo-romanas, portais barrocos e escadarias que remetem aos palácios de Veneza. Ou seja, uma região de intensa mescla de estilos e culturas.

- Aqui vive também um percentual bem pequeno de escritores judeus não-praticantes - auto-ironiza.

 

*

Um dos episódios mais importantes na vida de Paul foi a morte de Sam Auster. No sentido mais profundo e inabalável, Sam foi um homem invisível aos olhos do filho. Invisível para os outros também, e muito provavelmente invisível para si mesmo. Depois do divórcio, Sam viveu sozinho durante quinze anos.

Obstinadamente, opacamente, como que imune ao mundo.

Na época, Paul atravessava um momento bastante difícil financeira e existencialmente. Tinha um filho pequeno, Daniel (com a tradutora Lydia Davis, primeira esposa), um casamento em desintegração e uma minúscula renda que não chegava a uma fração do que precisava para viver. Transtornado, ficou quase um ano sem escrever uma linha. Não conseguia pensar em nada a não ser em dinheiro.

A atração pelo beisebol, contudo, o fazia entortar o pescoço para ver as manchetes das páginas de esporte do jornal lido por algum passageiro do metrô. Até hoje vai muito a jogos de beisebol.  Naquele ano de especial dureza econômica (1979), inventou um jogo de beisebol em forma de baralho, na ânsia de conseguir algum dinheiro. Tentou vender o jogo para várias empresas americanas. Em vão.


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Aquelas cartas só serviram mesmo pra eu brincar com Daniel.

Em dezembro de 1978 foi convidado por um amigo para ir a um ensaio aberto de balé e algo estranho aconteceu. Uma revelação, uma epifania, Paul não sabe exatamente qual a melhor palavra para descrever o momento em que grudou os olhos nos bailarinos.

O espetáculo me inundou de uma imensa felicidade. O simples fato de observar homens e mulheres se movendo através do espaço me inundou de algo próximo da euforia.

No dia seguinte, sentou-se à escrivaninha e começou a procurar uma “voz” para traduzir em palavras o sentido de sua experiência com o ensaio de balé. Foi uma libertação. Convenceu-se de que ainda era escritor, apesar de todas as turbulências e os bloqueios.

Mas não um escritor como antes. Um período novo estava prestes a começar. Eu sentia isso.

O telefone tocou às 8 horas de 14 de janeiro de 1979, precisamente o dia em que Paul terminou o texto sobre o balé, um conto ensaístico intitulado “Espaços brancos”. Um de seus tios informava-o de que Samuel Auster havia sofrido um ataque cardíaco fulminante durante a madrugada.

    Acha que tudo pode ter acontecido no exato instante da madrugada em que você finalizava seu primeiro texto em prosa após um ano de jejum?

    Sinceramente, acho que sim.

 

*

Os acasos, as sincronias e as coincidências são os princípios governantes da obra de Paul Auster. Ele tem sido muito criticado por causa disso, aliás. Dizem que ele usa a coincidência, por exemplo, para atenuar as coisas, ou para criar uma ilusão de que tudo pode ser explicado, ou para disfarçar seus defeitos de fabulador.


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- Na verdade, esses críticos não estariam tentando lhe dizer que você banaliza o uso do acaso e das coincidências em suas histórias?

- O acaso faz parte da realidade. Somos continuamente moldados pelas forças da coincidência, o inesperado ocorre com uma regularidade quase entorpecedora nas vidas de todos nós.

- Não é o seu caso, creio, mas a ficção de má qualidade sempre foi mestre em criar tramas e soluções artificiosas, que tentam amarrar todos os elementos, que forjam finais felizes...

- De fato. Mas quando falo de coincidência, não estou me referindo a um desejo assumido de manipular. Refiro-me à presença do imprevisível, à natureza totalmente desconcertante da experiência humana. De um momento para outro, tudo pode acontecer. Em termos filosóficos, refiro-me aos poderes da contingência. Nossas vidas não nos pertencem realmente. O desconhecido nos surpreende a cada momento. Vejo que minha função é me manter aberto a essas colisões, ficar alerta para todos esses mistérios.

 

*

O modo como Paul relembrou o dia da morte de seu pai é um sinal desse seu estado de alerta para as sincronias que tanto nos intrigam. Mas, afinal, por que a morte de Samuel Auster alterou para sempre a carreira do jovem escritor de 32 anos, que não havia conseguido publicar nada em prosa até então? Simples. O pai lhe deixara uma herança.

- Não foram rios de dinheiro, comparada com outras heranças, mas fez uma enorme diferença. O bastante pra mudar minha vida pra sempre. O dinheiro me deu proteção. Pela primeira vez na vida dispus de tempo para escrever, para assumir projetos longos sem ter de me preocupar com o aluguel e outras contas.

- Seus principais livros resultaram do dinheiro deixado por seu pai?

- Sim, com isso ganhei dois ou três anos de fôlego, o suficiente para me firmar.


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- É uma equação um pouco cruel. Foi preciso que alguém morresse para que você se deslanchasse. Você pensa nisso?

- Não consigo sentar e escrever sem pensar nisso. A morte de meu pai salvou a minha vida.

Três anos depois, aos 35, Paul Auster veria seu primeiro livro em prosa ser publicado: invenção da solidão (1982), composto de duas novelas. A primeira delas, “Retrato de um homem invisível”, é uma tentativa de entender um personagem arredio, opaco, “um bloco de espaço impenetrável na forma de um homem”.

 

O mundo ricocheteava nele, se espatifava de encontro a ele, às vezes aderia a ele - mas nunca entrava. Durante quinze anos meu pai assombrou uma casa enorme, completamente sozinho, e foi nessa casa que ele morreu.

 

- Este homem é Sam Auster, seu pai. Afinal, conseguiu dar a ele outro significado?

- No ato de tentar escrever sobre meu pai, comecei a perceber como é problemático presumir que se sabe algo sobre outra pessoa. Uma questão central daquela novela é a biografia. Perguntava-me a todo momento se de fato é possível uma pessoa falar em nome de outra.

 

*

Da mão para a boca - crônica de um fracasso inicial (1996) é uma espécie de ensaio sobre como escrever livros e ao mesmo tempo ganhar dinheiro para bancar as despesas pessoais. No livro, Auster claramente procura evitar dois perigos constantes em textos autobiográficos declarados: a auto-exaltação e a autocomíseração.

- Não me interesso por literatura confessional ou autobiográfica. A invenção da solidão e Da mão para a boca são os únicos que escrevi com essas características. Mesmo assim, considero o segundo um ensaio sobre como não ganhar dinheiro, ou sobre como tomar decisões erradas.


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Acredita-se, não sem alta dose de razão, que todo escritor empresta muito de si mesmo à composição de seus enredos e seus personagens. Mas o autor de Mr. Vertigo emprega elementos autobiográficos explicitamente. Alguns personagens têm no­mes que são de amigos e familiares do escritor.

Trilogia de Nova York, sua obra mais aclamada e mais debatida em universidades, é composta das novelas “Cidade de vidro”, “Fantasmas” e “O quarto fechado”. As três fazem paródia da literatura de mistério, e são distintivas das fusões e confusões que Auster gosta de fazer entre criador e criatura.

Em “Cidade de vidro” - que, separadamente, foi rejeitada por dezessete editoras Daniel Quinn, autor de romances policiais, recebe o telefonema de alguém procurando certo detetive particular chamado Paul Auster. Quinn decide encarnar o papel do detetive e os conflitos de identidade dos dois se misturam aos do personagem Peter Stillman, a quem o “impostor” deveria proteger.

 

Lembrar quem se supõe que eu seja. Não acho que se trate de um jogo.

Por outro lado, nada está claro. Por exemplo: quem é você? E se você acha que sabe, por que continua a mentir? Não tenho resposta. Tudo o que posso dizer é o seguinte: ouçam-me. Meu nome é Paul Auster. Este não é o meu nome verdadeiro.

 

Já em “Fantasmas”, o detetive Blue é contratado para seguir e vigiar Black, um escritor que quase não sai e passa praticamente o dia todo escrevendo. A vigilância desencadeia uma viagem psicológica ao interior de Blue.

Em “O quarto fechado”, por sua vez, outro escritor, este chamado Fanshawe, desaparece misteriosamente e sua esposa pede a um velho amigo do marido que avalie originais engavetados. O narrador-protagonista, crítico literário, analisa-os e decide publicá-los. Os livros de Fanshawe se tornam um sucesso e sua mulher se casa com o crítico. Começam as suspeitas de que o crítico é o próprio autor dos livros. Para driblá-las, o crítico então resolve


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escrever a biografia do “gênio” Fanshawe. Por fim, recebe do próprio uma ameaça de morte, feita por carta.

Segundo Auster, suas escolhas são uma questão de “plausibilidade e sinceridade”.

- Quando escrevo sobre problemas que eu próprio experimentei, consigo fazê-lo com certa convicção, de uma maneira que apaga a fronteira entre ficção e realidade. Isso não torna um livro melhor nem pior. E apenas um campo que gosto de cultivar. Mas nunca me revelei em minhas ficções.

Há uma parcela vivida de Auster em cada um de seus personagens, sujeitos em crise permanente. Seus heróis (ou anti-heróis) são levados a se separar geograficamente dos demais. É como se se relacionassem por uma espécie de canal artístico, em que a arte, especialmente a literatura, exerce um papel fundamental na comunicação.

Há muitos andarilhos sobrevivendo nas histórias de Auster, sujeitos que experimentam situações-limite, como se estivessem se submetendo a um teste, caso de Fogg em Palácio da Lua e Willy em Timbuktu. Não precisariam viver na corda bamba, mas optam por essa forma de vida talvez guiados pelo que gostariam de ser ou pelo que realmente pensam que são.

- Para mim não há situação mais extrema do que um andarilho sem uma casa pra voltar.

Mergulhados no isolamento, os protagonistas tentam encontrar respostas e soluções para suas crises e aprender com o desafio da busca. E aprendem, na maioria das vezes, com o ato de escrever sobre algum mistério psicológico desconhecido. De modo geral, não atingem a solução. O desafio e o esforço apenas agravam a crise e conduzem à perda da identidade.

- A natureza do que eu faço é quem sou.

 

*

Inspirador, eclético, reservado, nada ostensivo, quase anônimo em seu Brooklyn pessoal, Paul Auster tornou-se um dos mais cultuados autores americanos de sua geração. Nos últimos anos, enveredou-se também pelos corredores do cinema. Estreou assi-


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nando o roteiro de Cortina de fumaça (1995), dirigido por Wayne Wang. No mesmo ano, Auster e Wang’ dividiram tudo - da escolha do elenco à direção - em Sem fôlego, continuação do filme anterior.

O mistério de Lulu é o primeiro filme que concebeu e dirigiu integralmente. Tudo saiu de sua cabeça. Trata-se da história de um músico de jazz em decadência que transforma a própria vida numa bagunça. Certa noite, enquanto tocava, é brutalmente baleado por um maluco que invadira o jazz Club. Os ferimentos deixam o músico inválido, e ele não pode mais tocar seu instrumento. O resto da história gira em torno de sua tentativa de começar uma nova vida.

O filme também se confunde com a obra literária de Auster, gerando a suspeita de que a história funcionaria melhor em livro do que na tela. Ele discordou de imediato:

- Não. Até tentei fazer dela um romance, mas não deu certo. A história não me deixava em paz e eu tinha que arrumar um jeito de contá-la. Quando a recuperei, voltei ao primeiro propósito, que era um roteiro. Hoje, não consigo nem imaginá-la em livro. Ela precisava ser visualizada.

- Seu encantamento pelo cinema decorre da literatura ou o contrário?

- Algum dia sonhei ser cineasta, não escritor. Já adulto, porém, percebi que minha personalidade não servia ao cinema. Sou muito quieto, portanto mais adaptável à escrita.

- Você disse que ambas as atividades - cinema e literatura - são desafiadoras. Elas têm diferentes graus de dificuldade?

- Em literatura, tudo são palavras; no cinema, você trabalha também com arte, música, som, linguagens que me interessam muito. Mas escrever é a minha praia.

- Trabalha com disciplina? Escreve com facilidade?

- Com disciplina, sim. Mas com dificuldade. Costumo dizer que escrever é como arrancar um dente todo dia.

O cinema se transformou na sua forma de expressão coletiva, do mesmo modo que para o espectador. Os livros, uma experiência privada, circunspecta. As múltiplas atividades de Auster, na vida


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real e no trabalho, lhe conferiram uma maleabilidade sobre a qual nunca refletiu. No entanto, recusa a imagem do artista múltiplo.

- Nunca me perguntei, por exemplo, o que ganho ou perco me dividindo às vezes entre a literatura e o cinema. Em dado momento da vida, a gente sabe o que pode ou quer realizar. E, com uma certa dose de sorte, realizamos.

- Por que prefere alimentar uma visão desprentensiosa de si mesmo?

- Porque sou um contador de histórias. Nada mais.

 

*

Daniel é filho de Paul com Lydia Davis, primeira esposa. Daniel se dedica à fotografia. A filha Sophie é da atual esposa, Siri Hustvedt, escritora descendente de noruegueses. Sophie é a atriz precoce da família. Ela interpreta a filha do produtor em O mistério de Lulu e o pai acorda cedo todos os dias para caminhar com Sophie até a escola onde ela estuda.

Explorar Nova York a pé, possibilidade que tanto facilita a vida dos milhares de turistas que circulam por suas ruas diariamente, encanta também o escritor-residente - o Mr. Invisível do Brooklyn. Auster continua contemplativo em relação à cidade e adora descobrir detalhes especialmente na ponta sul de Manhattan. É onde procura renovar sua imaginação.

- Você disse que Nova York está [em janeiro de 1999] mais atraente e segura do que há dez anos. Isso é obra do prefeito republicano Rudy Giulliani?

- Ele fez muito. Mas as razões são mais complexas. Têm a ver também com toda a economia americana. Se ela vai bem, a violência diminui, invariavelmente.

- Já votou em republicano alguma vez?

- Nunca.

- Está satisfeito com os democratas da era Clinton?

- Não, mas dadas as alternativas. De qualquer forma, é impensável, pra mim, levar os republicanos em consideração.

Se dependesse de Auster, o impeachment de Clinton [relativo ao escândalo envolvendo o ex-presidente e a ex-estagiária da


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Casa Branca, Monica Lewinski] ficaria para uma “situação mais concreta e menos fingida”.

- Este julgamento é uma das coisas mais hipócritas que já vi. É a cara do que somos. Como autor, prefiro me comprometer mais com a verdade e menos com a política.

De volta da caminhada até a escola de Sophie, Auster entra em casa e põe-se a trabalhar com caneta, papel e uma máquina de escrever manual velha até as três ou quatro da tarde. Recusa a unanimidade em torno do computador, embora não tenha muitos dados para julgá-lo.

- Nunca experimentei um, portanto não sei se facilita ou não a minha vida. Tento manter uma rotina calma e previsível.

 

*

A pergunta “quem sou eu?” é outra preocupação constante na obra de Paul Auster. Ele se deixa fascinar pelo desequilíbrio entre o cidadão que escreve, o indivíduo que grava seu nome na capa do livro e o verdadeiro autor. Os três são a mesma pessoa?

- Me parece que as histórias são escritas de um certo lugar em nosso interior, um lugar desconhecido e inacessível. Por essa razão nunca a biografia e a obra de um escritor estão em acordo. Nenhum estudo biográfico jamais conseguirá dizer exatamente de onde vem o conteúdo que ele põe no papel.

- E como se uma biografia só fosse possível pela combinação de fatos com meditação sobre as (im)possibilidades da escrita biográfica...

- Precisamente.

Os acadêmicos tomam Trilogia como ponto de partida para discussões sobre literatura pós-moderna. Inúmeros artigos e te­ses versaram sobre o tema, mas Auster procurou manter-se fora dos debates. Trilogia foi provavelmente o primeiro livro que chamou a atenção das pessoas para seu trabalho.

- Ao longo da vida, aprendi que há um fã para cada livro publicado no mundo. Quando escrevo, penso num leitor imaginário, que sou eu mesmo.

- Você se preocupa se as pessoas estão lendo seus livros?


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- Claro que me preocupo. Tenho que me preocupar. Mas há tantas interpretações possíveis quanto leitores para um mesmo livro.

- O objeto livro está em extinção?

- Não, e lhe digo por quê: a leitura é uma das raras experiências humanas em que dois estranhos se encontram numa situação de suposta intimidade. E é por isso que ainda descobrimos um pouco de humanidade nesse tipo de experiência. E insubstituível. Trata-se de um importante elemento para estar vivo; abrigo um para o outro, num nível profundo e aberto.

 

*

P.S.: Eis um perfil em que não ocorre o sempre altamente recomendável encontro repórter-personagem. Tentei agendar uma entrevista com Paul Auster em dezembro de 1998. Eu estaria de passagem por Nova York, como parte do processo de divulgação do meu livro Os estrangeiros do trem N na comunidade brasileira local. Contratempos envolvendo Carol Mann, agente literária de Paul, e outros fatores acabaram, dificultando a entrevista.

Semanas depois, porém, já no Brasil, consegui falar com ele em duas ligações telefônicas. As conversas duraram cerca de uma hora e meia cada. Em ambas as ocasiões, estava um frio de lascar em Nova York quando Paul me atendeu: em torno de 8 °C negativos bem no meio da tarde. Paul fez pausas para espirrar e tossir, mas em nenhum momento sugeriu que interrompêssemos o diálogo.

O fato de eu ter lido todos os livros que publicou em português mais um volume considerável de entrevistas concedidas por ele ajudou bastante na elaboração de um roteiro especial de perguntas, a fim de quebrar o distanciamento físico; e os trechos que invocam visualizações foram escritos com base nas memórias de minhas andanças por Nova York entre 1993 e 1994. Este texto nasceu, portanto, de uma barreira geográfica.


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ALMA DE RELOJOEIRO

 

O cuco nos interrompe para avisar - quebrando um sossego perfeitamente dentro do recomendado pela Organização Mundial de Saúde - que já é meio-dia.

- Daqui a pouco o almoço estará pronto - informa Tezza.

O apartamento de Cristovão Tezza, no bairro Alto da Glória, onde ele mora com a esposa Beth e os filhos Felipe e Ana, está imerso numa atmosfera de cautelas. Curitiba, que entrou em evidência nos anos de 1980, mais por suas soluções urbanas que por sua literatura, deve ter exigido de Tezza um exercício de observação fabuloso.

Seus romances lidam com a estreiteza do dia-a-dia sereno, repleto de rigores e disciplinas; com a trivialidade de indivíduos cultos podados em sua auto-afirmação. Certa vez, ele escreveu que “Curitiba é uma senhora bastante reservada, muito consciente do seu espaço, entre as casas, as árvores e as pessoas”.

- Esta é uma cidade feita de Outros. Antes de fazer qualquer coisa, o curitibano olha para os lados para conferir se não está sendo inconveniente ou desmedido. O Outro adquire aqui uma importância brutal.

A reclusão dos escritores da capital paranaense extrapola a natureza do ato de escrever, como já disse e demonstrou o imortal poeta curitibano Paulo Leminski. Ou seja, todos têm a solidão


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como destino, e por isso são vistos como vampiros. Passam incólumes diante de um espelho, ou jamais o enfrentam.

Guardados em circuito fechado, raramente compartilhado fora das páginas de um livro, os ficcionistas curitibanos são estetas do particular. O vampiro-mor Dalton Trevisan tratou a cidade e os personagens que a habitam como sórdidos impiedosos. Zombou da seriedade dos curitibanos.

Cristovão Tezza, cinqüenta anos, da geração seguinte, explora também esse olhar de verruma. A maioria dos viventes de seus romances é de classe média e mora em apartamentos, enquanto “os de Trevisan criam galinhas no fundo do quintal”, tendo o sexo como último recurso. Enquanto a literatura baiana ou carioca é brejeira, a de Tezza reflete uma angústia à curitibana.

- Creio que não somos habitantes de um cenário cultural definido, como os mineiros e os gaúchos, por exemplo. Não temos tampouco uma imprensa de qualidade. O que não se integra pela mídia não se converte em notícia, não aparece e, portanto, não existe.

- Ouvi dizer que a cidade tem um dos mais baixos índices de leitura de jornais do país, e um dos mais altos de leitura de revistas.

- Temos de ler os jornais de São Paulo e Rio, comprar os livros dos sujeitos que não nasceram aqui, ver os programas de TV que chegam por via planetária, assistir aos grupos de teatro visitantes etc. Como no Brasil tudo se centraliza, ficamos alijados, sem espaço. Esta é uma cidade fortemente oficial, em que o convívio social ocorre dentro de casa.

- Qual a melhor companhia para um escritor em Curitiba?

- O bom humor.

 

*

Catarinense de Lages, radicado na capital paranaense quando menino, Cristovão Tezza é alto, claro, de cabelos negros lisos e oleosos; raspara a barba somente na região do pescoço, mantendo o queixo felpudo; seus dentes superiores ressaídos são coadjuvantes de um sorriso permanente, mas sutil; ouve minhas perguntas com uma descontração invejável.


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Isento de protocolos, ele é o protótipo do intelectual pacato. Dispõe hoje de conveniências (seriam privilégios?) impensáveis em outras metrópoles do país, como poder caminhar por umas poucas quadras arborizadas e incrivelmente limpas até chegar ao prédio da Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde leciona língua portuguesa para os alunos de letras e comunicação social.

Contribuem para seus confortos a atividade remunerada de professor universitário e sua própria disciplina. Ele escreve com esferográfica, em papel segunda via, das 14 às 18 horas, impreterivelmente, tempo que costuma lhe render um palmo de texto por dia, no máximo.

- Mas rigor não resolve. A aventura é cega.

 

*

Em um dos diálogos do romance Breve espaço entre luz e sombra (1998), o pintor Richard Constantin diz a seu futuro pupilo que...

 

As obras de arte também obedecem às leis do DNA. Um pedaço contém potencialmente todo o resto. Acho que isso acontece com todas as artes. Na literatura, por exemplo, Kafka tinha o costume de não acabar os livros; não precisava. A parte contém previamente o todo. Já Dostoiévski, esse não tinha a menor idéia, pela manhã, do que escreveria à tarde - e no entanto, também nele o DNA é visível em cada linha.

 

Para que uma parte pertença a um todo original, é preciso convicção, persistência e uma dose de sorte. O terrorista lírico (1981), Trapo (1982), Juliano Pavollini (1989), A suavidade do vento (1991) e outros livros de Tezza representam mais ou menos o mesmo Todo. São obras harmônicas entre si, mas fogem à repetição e à vã insistência.

O problema é que não basta uma obra. E preciso levar em conta a árdua, às vezes inglória, tarefa de conquistar acolhida dos que têm na mão a tinta, o papel e o canal. Ou seja, aqueles que podem diminuir o desconhecimento do mundo em relação a autores e livros.


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Para essas e outras angústias, Tezza tem um curinga: paciência de relojoeiro. O fato de ter sido relojoeiro, aliás, reflete sua tolerância com a tecedura, seu senso de detalhe e apreço pelo suspense não-policialesco. Além do mais, vive numa cidade escrupulosa, regulada por algarismos e ponteiros, eixos e mecanismos, cucos e pêndulos.

 

*

Em 1976, aos 24 anos, o hippie Cristovão fez um curso de relojoaria por correspondência. Orgulha-se do diploma hoje emoldurado, protegido por vidro e enfeitando o seu apertado escritório. Aquele ano foi profícuo. Diploma debaixo do braço, ele se mudou para Antonina, a 84 quilômetros de Curitiba, paraíso da contracultura paranaense da época. Abriu uma relojoaria batizada Cinco em Ponto, em referência ao poema de Garcia Lorca.

- Desmontar e montar um Westclock, por exemplo, levava três horas. Pelo trabalho eu recebia o equivalente hoje a cinco reais. Em trinta dias havia consertado todos os relógios da cidade. E àquela altura os japoneses já estavam praticamente liquidando esse negócio de reparar relógios mecânicos.

Mas a mudança para Antonina, cidade-porto próxima ao bico da baía em que o Atlântico mais adentra a América do Sul, tinha razões até mais fortes, como criar uma sociedade alternativa por meio do teatro. Havia o guru, a Bíblia e a utopia; o horror à ditadura, o amor à natureza, o sexo, o rock-n’-roll e a maconha para os rituais.

O guru era Wilson Rio Apa, dramaturgo e escritor paranaense, um messias sem cunho religioso. Apa escrevera A revolução dos homens, Bíblia da comunidade - libelo contra o esmagamento da pessoa humana, como informa a orelha da obra hoje guardada por Tezza entre suas melhores recordações.

- Nosso propósito era levar uma vida quase-medieval, trabalhando artesanalmente. Como não produzo objetos e sim histórias, acabo sendo parte do que faço.

Com Apa, Tezza foi tudo: diretor, iluminador, sonoplasta, cenógrafo, ator. Rio Apa ainda lhe valeu uma tese de mestrado ten-


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tando compreender como o guru conseguia simular um mundo épico quando isso já parecia humanamente impossível.

Antes da experiência da sociedade alternativa em Antonina, Tezza já havia jogado a mochila nas costas. Desembarcou em Coimbra e atingiu a Alemanha decidido a observar o pragmatismo germânico. Com o troco da passagem Lisboa-Frankfurt, cortou os cabelos, comprou um colete e levou na mão uma máquina Olivetti portátil. Mas estava praticamente duro, preparado para trabalhar em certo Hospital das Clínicas, onde um argelino de sotaque português estendeu-lhe um uniforme branco e disse:

- Você começa agora mesmo.

Tezza aceitou esticar lençóis, colocá-los na prensa da máquina, retirando rapidamente as mãos, claro, de modo que os lençóis magicamente se dobrassem e passassem, caindo como plumas num carrinho. Passado o último lençol através da máquina, vinham outras toneladas de tecidos brancos recém-lavados.

Ser transferido para a limpeza geral do prédio foi a novidade mais bem-vinda em poucos dias. À noite, alimentado e exausto, enfurnava-se num quarto provisório subterrâneo. Nos bastidores do hospital conheceu (ou melhor, inventou) a mais duradoura e impronunciável palavra de sua vida: Libstrasshoffblüesdramgstderr.

- Esta palavra existe?

- Não. Ela é uma sensação que qualquer pessoa que não sabe alemão sente ao desembarcar na Alemanha: ficamos rodeados de palavras que não existem! Fui juntando radicais verossímeis - líbs, hoff, dramg, derr - e coloquei tudo numa palavra. Recebi até elogio de um professor de alemão, que riu muito da construção e disse: “Parece que existe!”. Eu estava brincando com a extensão das palavras alemãs, que são imensas - eles vão juntando tudo! Dado o impacto que escritores sentem com o mistério das palavras, acho que naquele momento nasci como escritor. Eu contemplava essa palavra de trás para diante e ficava pensando muitas coisas.


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Como hippie às avessas, o dinheiro poupado deu para viajar durante seis meses, com permanências mais longas em Paris e Barcelona. O período gerou correspondências cheias de significado. Suas epístolas e o interesse pelas de outrem ajudaram a inspirar o envolvente Uma noite em Curitiba (1995), romance em que o professor de História Frederico Rennon tenta reviver por cartas uma paixão de 25 anos com a atriz Sara Donovan. De um simples convite para participação em um ciclo de palestras, as cartas de Rennon, sob o filtro do filho playboy narrador, conduzem o suspense. Rennon não percebe, mas suas cartas acabam revelando mais do que ele gostaria.

- Pela época em que se passa o livro, o e-mail até seria inverossímil, como a própria internet. Mas, se fosse hoje, Sara e Frederico poderiam trocar e-mails em vez de cartas. O que acha?

- Não creio. A carta tem toda uma convenção formal - um “tempo” - que o e-mail não tem. De qualquer modo, Sara é uma atriz e não correspondia, só telefonava. Os atores são mais ou menos assim. E o professor Rennon estava interessado em “escrever” - no sentido mais demorado do termo. Ele revê a própria vida enquanto escreve.

- Como você difere uma carta tradicional de um e-mail?

- O e-mail tem a rapidez e a superficialidade de um telefonema, enquanto as cartas trazem um conteúdo peculiar. Elas podem desvendar a identidade tanto do remetente quanto do destinatário. O remetente exprime sua visão de mundo, sua auto- imagem (pelo menos o que quer ser ou gostaria de ter sido), e o grau de intimidade entre ambos determina a linguagem utilizada.

- De fato, nos e-mails a noção de tratamento parece nos escapar.

- Ele permite uma superintimidade súbita entre pessoas essencialmente diferentes.

- Falta aos e-mails um “protocolo”?

- Acho que sim. Já notou que todo horóscopo é escrito mais ou menos da mesma forma? E sabe por quê? Porque a linguagem


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astrológica já tem uma gramática própria, que levou anos para ser construída. Creio que está em construção, de alguma maneira, uma gramática própria também para os e-mails.

Essa análise toda vem de um professor estudioso da linguística. Mas Tezza prefere ser apresentado por suas ficções, não por sua carreira acadêmica, talvez porque ele tenha virado professor concursado aos 32 anos meio por acaso. O emprego como professor é o seu primeiro com carteira assinada. A errância era uma instituição nos tempos da juventude de Tezza, mesmo na cronométrica Curitiba.

 

*

Em outra passagem de Breve espaço, o mentor Richard Constantin impressiona o jovem pintor Tato Simmone dizendo que um artista não tem escrúpulos, tem caráter.

 

Caráter é aquilo que transparece no que faz, seja música, teatro, pintura, literatura, dança ou mesmo ciência, que, afinal, é a mais sofisticada das artes, porque mais que todas as outras tem a aparência viva da verdade. [...] Não deixe absolutamente nada nem ninguém tocar sua obra. Podem até pisar em você, que não interessa, mas não nela; ela é a sua vida. As pessoas têm amigos enquanto são pessoas, comem, correm, pagam contas, têm vizinhos, bebem. Mas artistas não têm amigos: eles são um impulso brutalmente narcisista.

 

Nada a ver com o imaginário dos anos de 1960, de onde proveio o fortalecido sistema imunológico de Tezza contra certos vaticínios tolos: que o romance está morrendo e os leitores, sumindo; que o livro vai acabar; que os valores éticos se converterão em desvalores e é preciso aparecer, consumir e esquecer tudo minutos depois.

Uma das compulsões da atualidade é evitar-se o passado para poder manipular o presente, com vistas a antecipar o futuro. Mas o que já foi escrito pode sempre ser escrito de outra maneira, contrariando os determinismos elitistas.

- Futurologias não têm mais importância pra mim. Estou seguro de que só a escrita civiliza. Qualquer projeto humanista,


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hoje, terá de passar pela escrita de alguma maneira, mesmo via internet.

- Você laia com a firmeza dos jovens sonhadores dos anos de 1960, quando os projetos existenciais entravam nos balanços da vida.

- Sim. Nos meus balanços, a literatura sempre esteve presente. Costumo dizer que eu era escritor mesmo antes de ser.

- Acha que gerações como a de sua filha Ana também se preocupam com a “essência”?

- A juventude alternativa da minha época estava imbuída de uma espécie de “racionalismo messiânico”, que, justamente por ser messiânico, acabava em projetos irracionais e totalitários. Mas havia uma sinceridade essencial, uma entrega de corpo e alma. Hoje vive-se num universo muito mais pragmático, em que a pressão da sobrevivência parece muito violenta.

 

*

Escritores podem cultivar e repetir infinitamente suas obsessões. Há os que se debruçam sobre as mesmas lembranças e não as terminam nunca. Insistir nelas, por sinal, é uma forma de tentar resolvê-las; outros são representativos de uma época, um lugar ou um povo; já os monotemáticos batem a vida inteira na mesma tecla; não se deve esquecer dos estetizantes, que depositam na linguagem sua esperança de grandeza; e por último os contadores de histórias.

Mas deve haver uma boa razão para esses indivíduos se debruçarem tão arduamente sobre algo que em princípio não está sendo solicitado por ninguém; que só é publicado com grandes dificuldades, que vende em geral muito pouco e cuja repercussão quase sempre está próxima de zero.

- Jorge Luís Borges dizia que quando estava escrevendo tentava não se compreender porque a autoconsciência lhe era um pecado. Por excesso de consciência, talvez, você preferiu não levar a literatura para dentro da sala de aula. Por quê?

- A idéia de organizar a literatura didaticamente poderia ser danosa. É colocar demasiada lógica e clarividência no que tem


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seu impulso misterioso. Sinto-me bem como professor de língua portuguesa; trabalho com a linguagem não-literária de todos os dias, a língua viva, e isso me fascina sem invadir meu mundo romanesco.

- Aos autores brasileiros falta crítica, autocrítica ou o quê?

- Não sei. Acho que, nos anos de 1970, a crítica se enfurnou na academia, muito por causa de sua preocupação científica, via estruturalismo. Naquela época, o espaço da literatura começava também a perder terreno nos jornais, ocupado pelo império da resenha, que hoje domina tudo. Nos anos de 1990, começou a haver uma volta da academia para os jornais - você pode observar como é grande o número de professores universitários que escrevem em jornais.

- De qualquer modo, são linguagens distintas: a do jornal e a dos ensaios, teses, etcétera.

- Excepcionalmente elas podem coincidir.

 

*

Fazia um calor bastante desagradável na capital mais invernal do Brasil no dia do nosso encontro. Almoçamos tranqüilamente, como não poderia deixar de ser. Uma família pequena tilintando talheres ao redor de uma mesa no início da tarde, aliás, é uma distinção. Nem é preciso exame de fundo de olho para perceber como a curiosidade se insinua por trás dos recatos e das retidões.

Ana fala de seu interesse por fotografia; Beth lembra como seu pai foi liberal em relação ao namoro com Cristovão; Felipe, por força maior, não estava em casa para o almoço. Tezza diz que o projeto social-democrata clássico é o melhor antídoto contra os males do capitalismo. Mas o cuco se intromete mais uma vez.

O que vem depois da batida das horas? Nesta casa aparentemente imune ao pulsar às vezes escravizante do calendário convencionado mora um escritor com alma de relojoeiro. Meticuloso, tolerante, disciplinado, ele maneja as horas como Curitiba maneja o presente.


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OS OSSOS DE RIBAMAR

 

José Ribamar (Ferreira Gullar) não separa da poesia nenhuma parte da vida nem de sua ossatura longilínea, agravante e inquieta. Numa tarde de sexta-feira, na rua Duvivier, em Copacabana, Rio, supreendi-o aos setenta anos ainda afundado até a garganta nessa realidade suspeita que todo exemplar humano - e principalmente um poeta reconhecido - está destinado a enfrentar.

Poderíamos definir Ferreira Gullar como um poeta com os pés no chão. Mas para que tamanha redundância? Gullar é racional por natureza, evita o delírio, não sonha com a salvação pela arte e não está nem aí para a popularidade. O senhor é aquele poeta, aquele Ferreira Gullar?, acontece de lhe perguntarem na rua.

- Às vezes..., respondo. Não durante as vinte e quatro horas do dia. Se quisesse sobreviver com poesia, estaria morando em alguma favela. Uma parte de mim faz poesia, outra parte ganha a vida.

O que um poeta de verdade pretende expressar? Emoções quaisquer, não; dor bruta, nisso Gullar nunca acreditou; júbilo por alguma flor desabrochando, por sua vez, é bagatela; colorir alguma ninharia, só se for com pincel e tinta. Perto de Gullar, o poema é natural. Mas ele goza o poeta que não quer se contaminar com a vida e que diz:

 

meu poema é puro, flor

sem haste, juro!


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Não tem passado nem futuro

Não sabe a fel nem sabe a mel:

é de papel.

 

Foi preciso que o espírito de T. S. Eliot baixasse na mesa da sala repleta de livros, telas figurativas, retratos amarelados, esculturas, coisas de um quase-estúdio tingido de palidez sépia. Se problema de poeta fosse expressar emoções, nada estaria resolvido. Nada está resolvido, aliás, porque o contexto continua exigindo mais e mais firmeza.

- T. S. Eliot dizia que o poeta escreve para livrar-se da emoção, não para se emocionar. Mesmo quando nasce da dor, um poema não é mera expressão da dor, mas a transformação da dor em beleza estética. O poema mais trágico, por sua vez, não pretende transmitir sofrimento e sim realizar a alquimia do sofrimento em alegria, a alegria que a arte possibilita.

Copiar a realidade, exibi-la na sua banalidade crua, ilusão de maduros e imaturos, não é finalidade das artes, acredita Gullar. Mas em tudo há bons e maus exemplos. Ele suspeita desse negócio de copiar o Brasil, de ambicionar expor este país às vezes ininteligível em imagens e palavras. Superdoses de realismo podem só reforçar o conservadorismo.

- Aquele filme Cronicamente inviável [de Sérgio Bianchi] é assim. Além de horrível, uma mentira. Esquemático, antidialético. Só mostra o lado negativo do país, e de um modo primário. Uma bobagem. Pra mim, é a expressão da falta de alternativa. É mal enxergar a realidade e permanecer preso a ela, não conseguir transcender.

- É como se faltasse poesia?

- Sim. Até porque toda arte tem de conter poesia. Não há cinema, escultura, pintura ou livro que dispense ter pelo menos um pouco de poesia. Todas as artes buscam uma certa poesia.

Talvez por isso Gullar extraia seus versos da vida, misturando-se e confundindo-se com ela enquanto compra pão na padaria da esquina, paga contas em banco, escreve ensaios sobre artes vi-


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suais ou acaricia Gatinho (seu gato), homenageado em Um gato chamado Gatinho, sua primeira incursão pela literatura infanto-juvenil.

Gullar é mais lúcido do que seus mais decantados poemas podem nos levar a supor. O sofrimento está para a certeza como a frivolidade para o vazio. A vida cotidiana imediata, diz ele, implica sofrimento, alegria, monotonia, repetição, entre outros pormenores limitantes.

- Há uma série de coisas que não são o melhor da vida, mas são a maior parte dela. A poesia procura então realizar uma alquimia. Mesmo a pior parte da vida pode, no plano estético, se transformar em beleza. Minha poesia, por exemplo, mudou com o país e as circunstâncias.

De tempos em tempos, Gatinho se espreguiça dentro de uma caixa próxima à janela. Para Gatinho, é como se Gullar e eu não existíssemos.

 

*

O curso da política latino-americana pré e pós-64 arrastou Gullar para o olho de um furacão. Sua experiência de exílio resultaria em narrativa - Rabo de foguete (1998) - por insistência de Cláudia Ahimsa, sua atual mulher. Apesar do sufoco, o exílio frutificou o visceral Poema sujo (1975), escrito em Buenos Aires.

 

E do mesmo modo

 que há muitas velocidades num

 só dia

e nesse mesmo dia muitos dias

 assim

não se pode também dizer que o dia

tem um único centro

(feito um caroço

ou um sol)

porque na verdade um dia

                                           tem inumeráveis centros      


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como, por exemplo, o pote de água

na sala de jantar

ou na cozinha

em torno do qual

desordenadamente giram os membros da família.

 

Gullar e os seus estavam metidos em um círculo vicioso. Em 1975, o filho Paulo havia desaparecido pela enésima vez; o caçula, Marcos, envolvera-se com drogas; Luciana praticamente trocara a família pela comunidade religiosa a que se juntara; a primeira esposa, Thereza, arrasada diante do esfacelamento familiar; Gullar, com o passaporte cancelado pelo Itamaraty, impedido de ir para qualquer outro país senão aqueles que faziam fronteira com o Brasil; além disso, corriam rumores de que brasileiros estavam sendo seqüestrados em Buenos Aires e levados para o Brasil com ajuda argentina; e o general Jorge Videla já implantara a ditadura militar no país.

- Dois filhos meus enlouqueceram. Só por causa do meu exílio não deve ter sido. Mas se eu estivesse por perto, talvez as coisas pudessem ser diferentes.

Antes de Buenos Aires, Gullar já havia estado em Moscou, Lima e Santiago do Chile (meses antes de Augusto Pinochet depor o presidente socialista Salvador Allende). Ele brinca:

- Os companheiros de exílio, que estavam em outros países, me diziam: é bom você não vir pra cá, senão cai o governo. Porque era eu ir pra um país e vinha um golpe militar...

 

*

José Ribamar Ferreira nasceu em São Luís em 10 de setembro de 1930. O caso é que, no Maranhão, muita gente, pela devoção a São José do Ribamar, se chamava Ribamar. Naquele tempo havia vários ribamares que eram poetas, incluindo um tal Ribamar Pereira, solene, de quem O imparcial publicou o poema “A monja”, em 1948, com o nome de Ribamar Ferreira. A troca de Pereira por Ferreira, e a “má qualidade” do poema, principal-


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mente, irritaram o locutor da Rádio Timbira, que teve o privilégio de corrigir a confusão lendo uma nota ao vivo.

O locutor era José Ribamar Ferreira. Em ondas curtas, o locutor-poeta garantiu que mudaria de nome em protesto. Assim surgiu o pseudônimo Ferreira Gullar (Goulart é um dos sobrenomes de Alzira, sua mãe), encarnado já em seu verdadeiro livro de estréia, A luta corporal (1954), publicado quando já morava no Rio e andava cismado de destruir a linguagem ou deixar-se destruir por ela.

Muitos anos mais tarde, José Ribamar Ferreira seria confundido novamente, desta vez com sérias conseqüências. O governo militar o processou por ser membro (e de fato tornou-se, mas por acaso e a contragosto, como diz) da direção estadual do Partido Comunista. Mas o confundiram com outro José de Ribamar, também maranhense e que participava da luta armada.

Em 1977, porém, o documento de absolvição expedido pelo Superior Tribunal Militar referia-se a José Ribamar Ferreira, mas os pais deste eram outros. O sujeito do documento era mesmo o tal líder camponês.

- E pensar que eu havia ficado todos aqueles anos no exílio à espera de uma absolvição que, afinal, se revelou desnecessária.

Àquela altura, o poeta-locutor já estava irremediavelmente no mundo dos adultos de outras plagas. São Luís tinha muita história e ventos que balançavam palmeiras esguias. Os estudos e o gosto (pioneiro na família) pela literatura foram roubando-lhe a molecagem.

Os amigos de pescaria, bilhar e futebol não compreenderam a guinada. Assobiaram, gritaram o nome do poeta no portão. Ribamar, que começava a refrear aquela “maravilhosa existência animal”, não atendeu ao chamado. Os moleques então atiraram pedras na vidraça e insultaram o aprendiz de dissidente. Ribamar Ferreira (Gullar) não foi mesmo.

Preferiu experimentar algo Um pouco acima do chão (1949), editado com recursos próprios.


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- Não o renego, mas é meu primeiro livro. Uma obra que considero imatura, sem a qualidade necessária para estar em Toda poesia (2000).

 

*

Em 1º de abril de 1964, menos de 24 horas após o golpe militar, Gullar se filiou ao PC, e tudo o que decorreu daí teve a inconsistência de um sonho não sonhado. Gullar achava que o país estava num momento em que tudo despencava e tinha de entrar para alguma organização a fim de continuar a luta.

- Houve momentos em que a vida agiu com mão excessiva- mente pesada sobre mim.

Refere-se às arbitrariedades cometidas pela América Latina ditatorial, presenciadas de perto, ao próprio exílio entre 1971 e 1977 e às mortes do seu caçula Marcos (1990), da ex-mulher, Thereza Aragão (1994), e do eterno amigo Dias Gomes, num acidente na avenida 9 de Julho, em São Paulo.

E agora, Gullar? O comunismo ruiu, a luz apagou, a utopia sumiu, a noite esfriou, e agora, Gullar?

- Companheiros meus acham que não, que houve apenas uma interrupção da experiência socialista e que ela será retomada. Discordo. Mas a luta pela sociedade justa continua e continuará. O desejo de justiça é inerente ao ser humano. Não conheço ninguém capaz de dizer “sou injusto e tenho orgulho disso”. A utopia socialista acabou, mas dentro de cada sociedade as pessoas estão reivindicando salários, respeito ao meio ambiente, relações comerciais justas etc. Hoje, o capitalismo não tem a desculpa de que isso é subversão comunista. O regime está diante de um espelho, tendo de justificar a desigualdade que constitui a sua essência. Já a falta de utopia, isto é mais grave: explica em parte a criminalidade, a barbárie, a falta de valores e perspectivas dos jovens.

- Qualquer ideologia é um falseamento da realidade, não?

- No sentido marxista significa racionalizar para justificar e encobrir a realidade.

- Algum outro pensamento hoje o tranqüiliza?


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- Não, nenhum. Mas alguma transformação irá ocorrer, tenho certeza.

 

*

No Rio, a partir de 1954, Gullar conheceu intelectuais, participou e fundou movimentos como o concretismo e depois o neoconcretismo, escreveu e encenou peças com Oduvaldo Viana Filho (Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come); teorizou sobre arte; escreveu para TV, sempre com Dias Gomes (Araponga, As noivas de copacabana e outros); reproduziu Goya com pincéis próprios, pintou o auto-retrato e figuras à la Giorgio Morandi; experimentou a vanguarda e, por tudo isso, pode afirmar com segurança:

- Minha obra não tem nada de tortuosa. Minha trajetória tem lógica interna, pois a poesia é uma busca permanente. Cada livro expressou essa busca. Ser coerente não é ser igual o tempo todo. Não nasci com uma fórmula. Poesia é invenção do poeta. Não importa coerência. E daí se Picasso era cubista? Importa que ele é bom. Essas classificações são bobagens do nosso tempo.

Se houve movimentos, grupos sectários, debates intensos, há que se levar em conta relativamente. As correntes se ligam também - e às vezes apenas - pelas circunstâncias. É assim que fornecem material e idéias conforme as épocas e os estados psicológicos nos quais os autores submergem.

- Hoje, não há mais movimentos?

- O que não quer dizer nada. Esse negócio de movimento é coisa do século XX. Toda a história da arte do século XIX para trás não teve movimento. Tudo foi criado a posteriori. Mas como ainda tem gente viciada nisso!

- Então, tudo o mais irá se repetir indefinidamente, como sempre?

- Não. Não vejo pasmaceira alguma hoje. Tem gente muito boa fazendo arte, como Siron Franco, Antonio Henrique Amaral, João Câmara, Iberê Camargo, Amílcar de Castro, Franz Weiss-mann, Ana Letycia, Fayga Ostrower, Rubem Grillo. E são todos recentes. Movimentos e vanguardas tiveram seu momento. Mas


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não são obrigatórios. Não foram no passado e não serão obrigatórios no futuro. A ansiedade pelo novo é outra mania da nossa época, O que importa, repito, é a qualidade. Para ser novo não é preciso virar um paletó de três mangas ou expor um tubarão serrado ao meio. Por que essa idéia renitente de algo radicalmente novo? A busca do novo pelo novo é uma futilidade.

E gesticula, rechaça a franja, se impacienta. Desta vez, Gatinho se deu ao trabalho de abrir um dos olhos. Mas ainda não se moveu.

 

*

Gullar não carrega consigo nenhum misticismo. Diz-se destituído dessa qualidade desde o nascimento. Sem um Deus imaginário, tenta lidar com a morte conformado com sua condição.

- A minha vida é essa que está aí. Um dia ela acabará - e será indiferente para mim o que irá acontecer. O que me tranqüiliza é ser feliz. E quando você é feliz, a morte está ausente. A vida é de um absurdo esmagador. Milhões de pessoas já morreram, mas não é possível aceitar a morte, embora ela seja a ordem natural das coisas.

- Um poeta tem que amadurecer cedo?

- Poetas precisam mais de intuição que de idade. Na verdade, acho mais fácil surgir jovens poetas geniais, caso de Rimbaud, que se revelou antes dos vinte anos, do que ficcionistas jovens geniais.

- Como maior representante vivo da poesia brasileira, você é um crítico do hermetismo ao qual as pessoas costumam associar a poesia. Pode haver hermestimo autêntico?

- Pode. E se houver, será legítimo. Um poema é uma coisa preciosa, que tanto pode nascer em mim quanto no cara que estiver ao meu lado no meio da multidão. Mas só vira poema se se souber fazer, se tiver o domínio da expressão.

Quando poeta se mete em ficção, agarra. Poema sujo era para ter sido um romance. Havia setenta laudas escritas, mas não funcionou. A prosa não fecunda Gullar da mesma maneira que o verso. Ele chegou a escrever roteiros para TV, muitas vezes


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em parceria com Dias Gomes. Sem Dias, ficou difícil. Gullar foi demitido da Globo.

- Foi uma boa coisa, fiquei livre para sempre da televisão. Não era minha enfermaria... No dia que me demitiram, convidei a Cláudia, minha mulher, para comemorarmos com vinho e tudo o mais. As pessoas têm medo de perder o emprego mas a gente sempre consegue sobreviver.

Passados setenta anos de vida, por mais racional, uma visita ao passado seria inevitável. O que foi, o que teria sido, o que será. Mas isso não se aplica aos sujeitos valentes.

- A vida não é o que deveria ter sido e sim o que foi. Cada um de nós é a sua própria história real e imaginária.

Todas as reviravoltas e infortúnios nos permitem interpretar Gullar de várias maneiras. Como homem, como poeta, como crítico de arte. Jamais como um ex-combatente. Os ossos longilíneos de Ribamar são como bambus ao vento. Balançam mas não vergam.


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CYBERAVÓ NO ANCORADOURO

 

" Tu és tão inquieta, Lya, que até a cegonha teve que dar-te uma bicada para te sossegar”, disse Wally Fett à filha nascida com uma marca no dorso da mão esquerda. Carimbo do desassossego ou sintoma de que estava em formação uma personalidade forte, contestadora?

Lya Luft era diferente das demais meninas de Santa Cruz do Sul (RS), onde nasceu, em 15 de setembro de 1938. Descendente de alemães, gente dura na queda, rígida, persistente, e num interior em que mulheres enfrentavam as primeiras luzes com os destinos mais ou menos cruzados, ou melhor, traçados.

A senhora é brasileira?, ainda se espantam na Alemanha às vésperas do século XXI. Mas é branca e tem olhos claros! Pois ainda pensam assim. O preconceito para Lya não tem nada de ingênuo ou inadvertido. É sinal de atraso, incomoda. Então, imagine lidar com ele há quarenta anos. Talvez por isso a romancista intimista, poeta por agregação, escreva sem geografias.

Lya focaliza o percurso existencial de personagens femininas tentando se autodefinir em meio a recordações às vezes amargas, temores incontíveis, perdas irreparáveis, fantasmas pairando sobre o convívio familiar. Algo bastante universal, aliás. Virgínia Woolf, tão traduzida por Lya para o português, conhecia melhor que ninguém a amplitude de todas essas conexões intimistas.


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Apaixonada pela mágica biblioteca do pai intelectual, o primeiro grande homem de sua vida, Lya encantou-se com os nomes-flores Açucena e Magnólia. Ah, por que não me deu um desses nomes, mãe? Reclusa em seu mundo de ruídos e silêncios muito particulares, Lya Luft podia ficar um bom tempo olhando flores, totalmente absorta, como se o futuro não fosse além do presente, ou vice-versa. Parecia querer entender cada coisa, respirar as árvores. Um comportamento pouco valorizado hoje em dia, infelizmente.

              Sou contemplativa. Desligo-me fácil. Chegaram a pensar que eu era louca de verdade, não essa louca engraçada de agora.

E ri. Tudo por ser uma jovem não-convencional, contradição das contradições em um cosmo previsível. E ainda mais porque detestava (ainda detesta, na verdade) os afazeres domésticos, bordar, cozinhar, passar. E também pagar a prestação da casa, decidir o que fazer da vida. Quando garota, se fosse obrigada a querer ser alguém, seria a Scarlet O’Hara (Vivian Leigh) de E o vento levou.

              Mas no internato protestante, era preciso arrumar cama, armários. Argh!

Contemplativa mas antenada; preguiçosa mas cumpridora. De um modo meio germânico, talvez.

              Na vida nada é natural. A minha foi uma luta contra o convencional, contra a disciplina alemã.

Lya foi a filha que o pai sempre quis e a mãe jamais imaginara. Ela, a mãe, morria de medo de Lya não arrumar marido porque lia muito. E como Lya lia. Começou com os contos de fadas dos Irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen.

-              Me impressionava nos contos de fadas a ameaça à felicidade, tanto quanto o sofrimento dos personagens das tragédias gregas.

-              Monteiro Lobato também?

-              Ah, claro que eu gostava. Eu era a Emília, a que infringia.

Quando criança, já achava um absurdo mulher obedecer a marido. Passar por isso um dia, nem pensar. Mas os vaticínios da mãe não se confirmaram. Lya casou duas vezes. O primeiro mari-


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do, conheceu-o no dia em que foi fazer vestibular para a Faculdade de Letras da PUC de Porto Alegre, com 21 anos.

Ela, que raramente se atrasa, atrasou. Quando abriu a porta da sala onde ia fazer a prova, deparou com o homem mais bonito que já viu na vida. O nome dele? Irmão Arnulfo, na época.

              Como?

              Irmão Arnulfo, isso mesmo. Era irmão Marista, não padre, embora usasse batina.

Antes de tudo era o Celso, Celso Pedro Luft, filósofo e gramático. Estremecida, Lya se sentou, fez a prova, passou no vestibular e foi ser aluna do futuro marido durante três anos e esposa não-doméstica outros 22.

- Ele deixou a batina por sua causa?

- Graças a Deus!

Até hoje, trinta anos de carreira, Lya responde a certas perguntas enfadonhas de leitores suspeitos de que ela é tão “complicada” quanto as personagens femininas de seus livros. Na pele do menino-narrador de O ponto cego (1999), escreveu:

 

Eu sou o que deixaram sob o tapete, o que à noite se esgueira pelos corredores, chorando. Sou o riso no andar de cima muito depois que uma criança morreu. Sou o anjo no alto da escada de onde alguém acaba de rolar. Sou todos os que chegam quando ninguém suspeita: saem de trás das portas, das entrelinhas, do desvão. Mas às minhas costas sopra essa voz mais forte do que eu: o anjo que fia, tece e borda, e me prende nesse enredo. Não calculei bem os seus poderes, nisso me perdi.

 

É o drama de uma criança muito especial, em descompasso com o tempo. Em dado momento, o menino diz “tenho que fazer do tempo meu bichinho de estimação, senão ele me devora”.

Essa ficção de porta para dentro, de quarto fechado, de toque estritamente pessoal, psicológico, é o modo como Lya desvenda as mulheres. As que conheceu, as que gostaria de ter conhecido.


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as que imagina conhecer. Assim, percorre o caminho de Clarice Lispector, mas com outra tonalidade.

Os romances A asa esquerda do anjo (1981, traduzido para o italiano), O quarto fechado (1984, traduzido para o inglês), Reunião de família (1982) e As parceiras (1980), os dois últimos vertidos para o alemão, abordam a contínua luta entre o princípio da vida e da morte. São mulheres marcadas. Todas. Para ler Lya é preciso entender que ela não escreve sobre a ternura como normalmente a imaginamos.

 

Aqui da Varanda, vejo um entardecer macio. O mar fingindo não ter segredos, nem outras vozes que não as dele. Hora de solidão. Eu queria solidão, para não ferir os outros nem ser machucada. Arestas demais. Agora, moça, você tem sua solidãozinha, com a caseira, o cachorro e a veranista que volta e meia aponta no morro. Um bando de mulheres sozinhas e doidas. [De As parceiras, primeiro romance de Lya após três livros de poesia, escrito no limiar dos quarenta anos de idade, e o que teve maior acolhida crítica.]

 

              Na época, não tinha a menor idéia do que estava fazendo. Nem sabia se havia escrito um romance ou o quê. Eu era muito insegura. As críticas em geral foram tão favoráveis que me espantei. Então me dei conta de que havia nascido para fazer isso.

              E se fosse o contrário, se houvesse recebido críticas demolidoras?

              Ficaria quinze minutos triste, como já aconteceu. Não mais.

              A crítica não importa mais?

              Tem importância, sim. Reconheço que o crítico e o bom leitor podem apontar caminhos interessantes.

Lya nunca se preocupou e até hoje não se ocupa em filosofar, psicanalisar, debruçar sobre suas próprias idéias impressas. Enquanto isso, exércitos de mestrandas e doutorandas vasculham linha por linha seus livros. Perscrutam os interditos e os avessos; sondam solidões e perplexidades; as atitudes feministas, as escrituras femininas; matrizes de gênero, individuações; o olhar


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diferenciado, o das minorias; reclusões e repressões representadas; o que é e o que não é “luftiano”...

Certa vez, Lya respondeu a uma pesquisadora:

 

Gostei muito do seu trabalho: sério, interessante, significativo. Sempre me espanto com as coisas importantes que as pessoas dizem a respeito de meus livros. Eu pouco sei disso tudo: apenas namoro o enigma.

 

Ponto.

              Você nunca se preocupou muito com técnicas?

              Nunca. Escrevo unicamente por prazer, e para mim mesma. Antes me angustiava escrevendo, hoje me divirto.

Ela costuma dizer que tem um olho alegre que vive e um triste que escreve; que há um grande desencontro, talvez insolúvel, na espécie humana. Seus olhos translúcidos escondem mistérios.

              Eu, misteriosa? Sou um bicho da minha casa. Como dizia o Erico [Veríssimo], eu me amo mas não me admiro. Minha história não tem nada de interessante. Sou uma pessoa sem graça.

Celso Luft, professor de português e lingüística, e primeiro marido, foi o guru de Lya. Paternal, companheiro, sujeito tranqüilo que a confortava, sóbrio e intelectualmente afinado com a protegida. O problema é que a vida é feita também de acabamentos. As relações acabam ou clamam renovação. Como nos livrar daquele monstro metade infantil metade adulto que nos faz achar absurdo que pessoas e paixões morram? A longa paixão com Celso acabou se tornando amizade, respeito e confiança.

              Isto não é de todo mal. Não é possível viver em tesão permanente.

 

*

Rio, março de 1985, vésperas da morte de Tancredo Neves. Nélida Pinon apresenta Lya ao psicanalista mineiro Hélio Pellegrino. Consta que, na primeira oportunidade em que ficaram a sós, foi Lya quem puxou assunto. Falaram sobre Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende, que formavam


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com Hélio um quarteto inseparável. De todos, só Hélio Lya ainda não havia conhecido pessoalmente até aquele momento. O casual virou uma paixão avassaladora. Eram já dois separados, garante Lya, duas granadas de amor a explodir fuxicos e indiscrições abomináveis. Ele e ela, mineiro e gaúcha. O Rio como ponto de encontro.

              Hélio representou um vendaval, a reabertura de todo tipo de polêmicas.

O próprio certa vez lhe disse, Alemoa, você me conheceu na minha melhor fase. Referia-se a já poder controlar um pouco mais suas vociferações, seus ataques de fúria, a refrear sua compulsão à sedução. Lya não aceitava com naturalidade suas idiossincrasias. Os paradoxos de Hélio estavam exacerbados. O agitador de esquerda vituperava as tradições da família, fazia pouco do conforto material, mas era capaz de repreender a filha que dormiu com o namorado.

Com Lya, ele cismou de cumprir todos os rituais. Significava, entre outras coisas, casar. Mas eu sou desquitada, exclamou. Não importava. Ele dizia que os dois formavam um casal CCC, em referência à sigla Comando de Caça aos Comunistas. No dizer de Hélio eram, na verdade, Cabeça, Coração e Cama.

Mas há os episódios inexplicáveis, ou explicáveis por uma ótica muito restrita, versada para uns poucos privilegiados. Os descomedimentos de Pellegrino afetaram-lhe a saúde. O furacão estava mais contido, talvez o estrago já tivesse sido feito.

No hospital, dois dias depois de um infarto não tão grave, Hélio acordou, alta noite, chamou o nome de Lya e morreu de um infarto fulminante. A morte sempre interrompe alguma cena do filme. Ficam os gestos inacabados, os beijos presos à garganta, as palavras não ditas.

Rio, 23 de março de 1988. Silêncio. Começava ali um dos períodos mais difíceis - o primeiro de dois - da vida da escritora emudecida. Os dois nem tiveram tempo para monotonias e desgastes. Tudo ainda era mágico. A dor se transformou nos poemas - tristes, a meu ver - de O lado fatal (1988):


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Nesta minha peculiar viuvez

sem atestado nem documentos,

apenas com duas alianças de pesada prata

e no peito um coração de chumbo,

 instalo ao meu redor objetos que foram dele:

a escova de dentes junto da minha na pia,

 o creme de barbear entre os meus perfumes,

e com minhas roupas nos cabides

a camisa dele de que eu mais gostava.

Na gaveta, vidros com os remédios

que o preservaram para o nosso breve tempo.

(Finjo a minha vida como ele finge a sua morte.)

 

*

 

Então podia a menina distraída, caseira mas nada doméstica, um dia virar adulta acadêmica? Bem que tentou. Não deu certo. Escreveu duas dissertações de mestrado, uma sobre Érico Veríssimo, outra sobre Lygia Fagundes Telles. O máximo que suportou foram dez anos como professora de lingüística.

              Meu espírito é anticientífico, de pouca capacidade racional.

Seu negócio é lidar com a imaginação. Solidões e desencontros, jogos de poder entre homens e mulheres, histórias que “não acontecem”, e que no entanto são de arrepiar os cabelos. Os equilíbrios entre a poesia e a prosa, a leveza e o tranco, são convites narrativos ao interior de tudo, da casa, da mente, do celestial.

Lya é hoje uma mulher encantada com as possibilidades tecnológicas, por exemplo. Uma avó permanentemente ao computador.

              Uma cyberavó.

Teve três filhos - Suzana, médica; André, agrônomo e arrozeiro; e Eduardo, professor de filosofia na PUC-RS, especialista em Hegel.

Ao todo, quatro netos amados e adaptáveis a uma avó carinhosa, não propriamente maternal, porque passa boa parte do tempo escrevendo e traduzindo do inglês e do alemão. Permanentemente plugada na internet. Na verdade, uma avó tão subversora


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quanto a menina leitora dos Irmãos Grimm. Lya troca e-mails ágeis, em ritmo speed.

              O correio eletrônico veio revalorizar a palavra. As pessoas são estimuladas a escrever. Diferentemente do que pregam por aí, acho que a internet veio para unir mais as pessoas, não para aumentar a solidão. O progresso nos permite ficar mais tempo em casa, por exemplo. E se esse tempo for usado para coisas boas, como ler ou conversar com a família, acho ótimo. Quem é gregário irá usar a internet para continuar sendo.

              Você nunca teve medo do novo?

              Não podemos ter medo do novo.

A tradutora de Günther Grass, Bertolt Brecht, Thomas Mann, Doris Lessing, Rainer Maria Rilke e outros grandes da literatura universal vive hoje o que chama de “uma falsa vagabundagem lírica”. Só faz o que quer e por prazer. Seja caminhar, conversar à toa, jantar fora com amigos. Filmes, não os intelectuais. Gosta de “filmes de guerra bem-feitos”, e policiais também.

Desde Exílio (1987), escrito durante os três anos vividos com Pellegrino - que, por sinal, foi quem escolheu o título -, Lya se recusava a fazer sessões de autógrafos. Em junho de 2002, com Mar de dentro, memórias de infância, deu mais de quinhentas assinaturas numa noite.

 

*

Em 1992, quatro anos depois da morte de Hélio, Lya aceitou a proposta de Celso para refazerem a vida. Voltou então para a casa do bairro Chácara das Pedras, onde mora, em Porto Alegre. Celso pouco depois sofreu um avc, ficando totalmente inválido até morrer em dezembro de 1995. O segundo tranco, do que Lya custou a se recuperar.

O amor é exclusivo e excludente. Minha ética é a da lealdade, com regras de convivência. Hoje as pessoas podem casar e se­parar com muita facilidade. Nem por isso tenho testemunhado menos sofrimento. O melhor é não seguir a manada. Por exemplo: Natal para mim não é um comércio, mas uma ocasião para confraternizar.


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Em última análise, é hoje uma mulher sozinha, mas menos angustiada por isso. Não por acaso Pellegrino brincava que Lya não era uma escritora, e sim uma “galinha choca”.

              A casa é meu ancoradouro.

Em 2002, Lya deixou a editora Siciliano, onde esteve por doze anos, e assinou contrato com a Record para dois inéditos - Perdas & ganhos e Dizer adens - mais toda a sua obra já publicada.

-                   Sempre é hora de recomeçar.


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O ARQUITETO DE MICROSCOPIAS

 

Manoel de Barros e seu filho caçula João Wenceslau foram me apanhar no hotel em Campo Grande às 8 horas, conforme o combinado. Iríamos de teco-teco alugado até a fazenda do poeta no Pantanal. Quando Manoel viu que eu era eu (não, nunca nos havíamos visto antes), reagiu:

              Ah, que bom que você é um garoto! - E me deu um abraço apertado, pleno de alívio, como se uma tremenda crise de ansiedade estivesse terminando naquele exato momento.

Manoel é um velho retraído, frágil, que hoje evita o próprio retrato. A minha proposta de um perfil o incomodou a princípio. Ele faz questão de reafirmar que poeta não tem biografia, tem só poesia. Portanto, para me tornar entendedor, eu teria de me virar com meias-palavras. Entre outras coisas, significa enfrentar a amplidão do Pantanal com um teco-teco e os versos dele com uma lupa.

Seu mundo é o dos seres minúsculos, desperdiçados: insetos, aves, peixes, bichos em geral, mas também seres humanos rodeados de distâncias e silêncios. Com um pedaço de linha escura sobre fundo branco Manoel fotografa, imagina, fantasia, inventa comportamento para as coisas. Trabalha com a tenacidade de uma criança descobrindo o desenho. Nos tocos de seus lápis “tem sempre um nascimento”.


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Acompanhei-o, então, com dois ouvidos inutilmente abertos, e tentando decifrar suas divagações em verso. A essa altura só a poesia lhe interessa. Ela é seu meio e seu fim.

              Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

E está inscrito nela que poderoso não é aquele que descobre o ouro. Poderoso, para Manoel, é aquele que descobre as insignificâncias: do mundo e as nossas. Ouros e insignificâncias fazem parte do Livro das ignorãças (1993). Sua “ignorãça”, presumi, é a fachada que ele encontrou para contestar o racionalismo ocidental, já advertido em outra rubrica:

 

Hai muitas importâncias sem ciência.

 

Ele não perde tempo com máquinas sem finalidade poética, como computadores. Prefere tocos de lápis e rasgos de celulose que compõem quantias consideráveis do material do escritório de sua casa em Campo Grande. Aliás, uma casa em estilo moderno, clean, extremamente funcional para um sujeito que flertou com troncos tortuosos e mil tipos de assobios.

Preocupa-o hoje a ciência dos homens. Os progressos também potencializam perigos inimagináveis.

              Tenho medo que essa confiança na Ciência nos leve a acabar com coisas que não se podem criar in vitro, como o amor e o desejo.

              O senhor se acha um homem fora do seu tempo?

              Dizem que sou “primitivo”. Tenho mesmo fascínio pelo primitivo. Vontade de regredir para o começo. Há palavras que devem estar dentro de mim há milhões de anos.

Chamá-lo de “poeta do primitivo”, aliás, é como chamar Federico Fellini de palhaço: um êxtase. O fato é que Manoel não suporta ser apenas o vovô que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às seis horas da tarde, que aponta lápis, que vê a uva...

 

Perdoai.

Mas eu preciso ser Outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas.


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Mais tarde anotei em minha caderneta: “É como se ele pretendesse entender a metafísica tornando-se inseto - FormiganhaZ, quem sabe livre de cair em sensatez”. No exato momento, a caneta falhou de um modo muito suspeito. O exemplo autografado de Retrato do artista quando coisa (1998) caiu no meu colo sem mais nem menos. Ainda anseio pelo retrato do porta quando humano.

 

*

Manoel nasceu em Cuiabá, no Beco da Marinha, em 1916. Mudou-se para Corumbá, onde se fixou de tal forma que até chegaram a considerá-lo corumbaense. Hoje vive em Campo Grande, a onde partimos no Cessna Centurion II, prefixo PTKHH, para um vôo de cerca de uma hora até sua Fazenda Santa Cruz, no meio da Nhecolândia, uma das primeiras regiões de ocupação do Pantanal, demarcada pelos rios Taquari e Negro.

Em pleno vôo, Manoel não se importa muito com episódio não se impacienta com as imprecisões da memória e, sossegado mais à vontade, contempla o Pantanal enquanto conversa, apostando ah e acolá. Por ter uma ligação atávica com sua terra, já rotularam também de poeta do Pantanal, poeta verde, poeta da ecologia, entre outros. Na academia e na imprensa também tem-se consumido tempo e espaço para tentar tingi-lo de classificações. Ele despercebe. Sabe que muitas dessas divisórias sã convenientes aos demarcadores.

Vendo a imensidão verde do Pantanal, 230 mil quilômetros quadrados, área maior que o Uruguai, impossível não pensar em como um homem que cresceu rodeado de distâncias e silêncio planícies vastas e paisagens incertas, que nunca se repetem ano a ano, pôde inspirar-se no minúsculo, no sem feitio, em caramujo esfregando-se em musgos de ruínas imaginárias?

E uma daquelas perguntas que, para validar-se, só permanecendo sem resposta. Sujeitas a tantas idas e vindas, mistérios equações, uma vida não cabe em livro, que dirá em versos. As inferências devem ser feitas com cautela. De repente, uma conf


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              Sabe, noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira.

              O mesmo com o que fala?

              Claro. Os sentidos é que mandam.

              Há um poema em que o senhor se refere à necessidade de termos um aferidor de encantamentos. O senhor tem um?

              Claro. É com ele que contemplo essa vastidão toda. - E sorri, entusiasmado.

 

*

Pausa para uma pitadinha de ciência, a contragosto do poeta. A geologia garante que quando ocorreu a elevação da Cordilheira dos Andes e do Planalto Brasileiro, há sessenta milhões de anos, a região hoje conhecida como Pantanal ficou em uma depressão, ou seja, numa área rebaixada em forma de concha.

Do teco-teco, a quatrocentos metros de altura, vemos que a Serra de Maracaju é uma das bordas da concha, que alaga anualmente entre outubro e abril. Pelo menos era assim nos tempos em que a mão humana não influenciava os ciclos da natureza. Chuvas continuam caindo de novembro a março na cabeceira do rio Paraguai, ao norte, indo cobrir centenas de quilômetros quadrados ao sul, através dos afluentes. Formam-se lagoas imensas e baías que minguam a partir de maio. Mas, por algum estranho desequilíbrio, o período de seca às vezes chega cedo.

Em horizonte mínimo - pois as altitudes da planície pantaneira variam entre cem e duzentos metros - há dezenas de tons de verde, como se os veios d'água tivessem sido filtrados na palma das folhas, criando hábitats aprazíveis para emas, sariemas, curicacas, anhumas, jacarés, cervos, veados campeiros, marre­cos, ariranhas, lobos-guarás, onças-pintadas e outros que tanto fascinam os estrangeiros.

              É um lugar inacabado. Os rios não cavaram o chão. Não formaram barrancos. Por isso não podem ser nomeados. São apenas corixos.


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Como os poetas, os corixos (rios provisórios) que se infiltram pelo cerrado ralo da região possuem uma sensibilidade desviada, ou seja, “começam a dormir pela orla”, como diz Manoel.

Na memória biográfica de Manoel de Barros faltam fatos e sobram paisagens, como aos corixos.

              Com tantas evidências, por que o senhor prefere que não o associem ao Pantanal?

              Lido com palavras, não com paisagens. O que dá sedimentação às minhas palavras é a paisagem. A paisagem pantaneira. Só que procuro transfigurá‑la. Quem descreve não é dono do assunto. Quem inventa, é.

Os ambientalistas engajados, no entanto, querem cooptar este senhor risonho, amável, franzino, cabeça de paina (grisalho, na gíria do Pantanal), três filhos e sete netos, como se ele pudesse servir de estandarte para a ecologia.

              A obra do Pantanal é de Deus, não minha. Quando me convidam para alguma causa, desconverso. Acho tudo isso muito chato.

              Mas lhe preocupa o fato de sua fonte de inspiração estar ameaçada...

              Sem dúvida. - E insiste com João Wenceslau, co-piloto do avião, que sobrevoe próximo ao rio Taquari, já bem próximo de sua fazenda. - Está vendo como aquele rio está assoreado? Desmatamentos na cabeceira fazem descer areia [e o solo do Pantanal como um todo é bastante arenoso] no leito, que se deposita ao longo. Em vários pontos, dá pra atravessá-lo a pé. Desse jeito, talvez nem mesmo uma tromba d’água consiga engravidar o rio Taquari - lamenta.

 

*

O Cessna pousa aos trancos na capineira da fazenda, uma pista demarcada com pneus velhos caiados. Trotamos como em lombo de mula. Manoel de Barros ergueu a sede da Fazenda Santa Cruz sobre terras virgens herdadas do pai, há quase quarenta anos. Relutou em aceitar a empreitada. Cogitou de vendê-las e investir o apurado em algum refúgio metropolitano, onde pudesse


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escrever poemas em paz, com seus tocos de lápis e seus papiros. Stella Barros, esposa há mais de cinqüenta anos, convenceu o marido a enfrentar o novo desafio. Acabaram vivendo na Santa Cruz cerca de dez anos.

              No início, era vida de bugre, de rancho sem portas. Morando aqui, só assinava promissórias, nenhum poema. Trabalhava muito. Veja só que coisa: pra lutar contra o gratuito, é preciso ócio.

Santa Cruz tem 15 mil hectares de terras avaliadas em R$ 3 milhões. A fazenda acolhe umas 5 mil cabeças de gado Nelore, patrimônio vivo de R$ 1,5 milhão, segundo cálculos de João Wenceslau. São bois pantaneiros “verdes”, de alimentação natural, como a maioria do rebanho de mais de 20 milhões de cabeças do Mato Grosso do Sul, o maior do país.

Com dois anos, os bezerros vão engordar em outra fazenda (menor), também dos Barros, perto da cidade de Rio Verde do Mato Grosso. Transportar o gado de uma fazenda para outra pode levar até oito dias de uma viagem da qual Manoel não participa mais. Não por ser poeta, tampouco por ser octogenário sem colesteróis ou neuras como as de alimentar-se apenas de carnes brancas ou de evitar qualquer carne. Imagine um vegetariano no Pantanal. Seria um bicho raro. Aqui se vive de carne e osso.

              O médico me disse que preciso comer peixe e frango. Argumentei que os animais mais fortes da Terra não comem carne branca. Ele não falou mais nada.

Por incrível que pareça, o Pantanal tem clima semi-árido, e acontece de a água precisar ser procurada a fundo. Na Santa Cruz há dez motores para bombear água subterrânea até a superfície. Em períodos de seca geralmente não sobra água para nada. Será preciso esperar as chuvas para revigorar os pastos e engordar o gado de novo.

Enquanto dirige sua picape por veredas e vaus, João Wenceslau expõe alguns balanços de sua empresa pantaneira:

As coisas pioraram muito para os criadores de gado da região. Houve uma desvalorização enorme. Em 1978, uma D-10, ca-


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escrever poemas mionete a diesel da Chevrolet, zero-quilômetro, por exemplo, custava o equivalente a setenta novilhos com dois anos de idade. Hoje, setenta novilhos não compram uma Silverado.

 

*

Enquanto os retrocessos culturais avançavam, Manoel de Barros padecia de fascínio por cidades mortas, casas abandonadas, vestígios de civilizações. Gosta de ouvir e ler Fozes da origem, da antropóloga Beth Mindlin, mas o prazer da reinvenção da linguagem começou com a leitura de Padre Antonio Vieira. Sonhava conhecer as civilizações inca, maia e asteca.

No Peru e na Bolívia, onde perambulou nos anos de 1940, procurou os lugares mais miseráveis. Pescava, bebia, passava os dias em meio aos descendentes diretos dos índios americanos. Empenhou-se em conhecer as maiores pequenezas do mundo.

              Me arrastei por beiradas de muros desde Puerto Suarez, Chiquitos, Oruros, Santa Cruz de la Sierra.

De Cuzco, no Peru, o arqueólogo Manoel foi parar em Nova York e deu de cara com Picasso, Chagall, Paul Klee, Dali, Miró e outros. Um choque. Seu aferidor de encantamentos devia estar descalibrado.

              Quando vi aquilo tudo, disse que se não fosse poeta, certamente eu teria sido pintor.

Para os pantaneiros, a Bolívia, a oeste, esconde os mistérios do entardecer. O pôr-do-sol “parece uma gema de ovo do lado da Bolívia”. Peão que é peão enfrenta a tal gema olho no olho, não lacrimeja, não se seduz pelo óbvio. O antropólogo Claude Levy- Strauss viajou em 1926 pelo miolo do Mato Grosso. Notou a simplicidade dos móveis no interior das sedes das fazendas.

 

Dois ou três mochos na sala, arames de estender roupas nos quartos servindo de armário e redes por todos os cantos. Foi um povo ladino, sensual e andejo que um dia atravessando o rio Taquari encheu de filhos e de gado a zona da Nhecolândia.


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Manoel foi criado de olho virado para a Bolívia, na fazenda do pai arameiro. Arameiro é o sujeito que faz cerca para isolar o gado, cortando árvores para fazer postes, passando o arame neles, debaixo dos quais a nômade família Barros acampava.

              Minha mãe nos pariu na terra. Não tínhamos como sair para lado nenhum naquela época. Até os oito anos, vivi no chão, de forma quase selvagem.

Em 1961, quando voltou do Rio de Janeiro, onde viveu uns quarenta anos, para assumir as terras herdadas, teve medo de virar múmia e emburrecer.

 

As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas.

Ou então, melhor dizendo: desacontecem.

 

O isolamento do pantaneiro não é apenas geográfico. Ele às vezes dói no peito. A maneira que encontram de diminuir as distâncias é botando enchimento nas palavras, criando apelidos, contando lorotas. Mediante “palavras vadias”, alargam seus limites.

Bernardo, que fez parte da vida de Manoel na fazenda desde muito tempo, é o personagem cujo silêncio é tão alto que só os passarinhos ouvem. Aos oitenta e tantos de idade, Bernardo internou-se num asilo em Campo Grande. Talvez não demonstre mais o “ar altivo de quem vê pedra nadando”, apenas a eterna inocência de um sujeito “quase árvore”, que alicia o carinho dos animais mais tinhosos.

 

O grande luxo de Bernardo é ser ninguém. Por fora é um galalau. Por dentro não arredou de ser criança. É ser que não conhece ter. Tanto que inveja não se acopla nele.

 

As pessoas aparentemente contidas no abandono ou abandonadas no pertencimento encantam Manoel de Barros, tanto quanto as soberbas coisas ínfimas. Surpreendente que o poeta tenha sido comunista pela mão de Apolônio de Carvalho, o velho amigo que o apresentou à literatura marxista.


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              Para a doutrina comunista, pessoas de inteligência curiosa são hereges - lamenta.

Em poucos anos de marxismo, Manoel saiu “de ventena” (correndo, em dialeto pantanês). Já bastam os lacanianos que têm orgasmos ao ouvir o poeta dizer que é um sujeito extraído de palavras, o que comprovaria as teorias do psicanalista francês Jacques Lacan.

Teorias, acreditai-vos, irmãos, são destrutíveis. A única coisa indestrutível é a morte.

-                   Salvo não seja. - E Manoel ri feito criança.


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A INCERTEZA EM CRISE

Beleza pura também tem função? A arte deve ser aplicada? A esfera é a mais perfeita das formas? Assim abriria o conto-possível intitulado “Páginas sem glória”, sobre o qual o carioca Sérgio Sant’Anna se debruçou anos até desistir temporariamente.

As preocupações estéticas, filosóficas e linguísticas fazem parte da vida e da obra do autor da novela A senhorita Simpson (1989), base para o filme Bossa nova, dirigido por Bruno Barreto, com Antônio Fagundes (Pedro Paulo) e Amy Irving (Miss Simpson).

Ambos, livro e filme, são fábulas cariocas feitas de humor, flertes, sexo e futebol. Sérgio Sant’Anna caprichou na fantasia amorosa; Bruno Barreto, na nostálgica homenagem a uma cidade onde o visual ainda parece compensar seu caos ulterior.

Senhorita Simpson e Bossa nova são composições distintas, embora compartilhem melodias. Do processo de produção do filme, Sérgio Sant’Anna se recorda apenas de que recebeu a quantia referente ao contrato de cessão de direitos.

Senhorita Simpson é a história mais descontraída de Sérgio Sant’Anna, e está acompanhada no livro homônimo por outros seis contos mais difíceis de digerir. A obra de Sérgio conquistou o status de cult no panorama da literatura brasileira dos anos de 1970 e de 1980.


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Em arte, cult tanto pode significar devoção a uma atividade desempenhada de modo não-ortodoxo para um público cativo quanto “relativamente pouco acessível à massa”. Os dois se aplicam a Sérgio. O conjunto de sua obra está marcado por engenhos complexos.

— Tudo o que faço parece muito elaborado, mas, na verdade, é espontâneo.

Ele diz estar permanentemente em crise consigo e com seu trabalho. A angústia, o medo, a procura de respostas para a estética, a linguagem e a existência em suas ramificações mais profundas são componentes de suas preocupações.

Um pouco deprimido, Sérgio tem duvidado de seu poder de fogo como personagem nesse conturbado jogo de circunstâncias que é a vida. Decidiu rebobinar a fita (a da própria existência) e rever alguns cenários.

— Certas fases da vida tendem a interferir ou auxiliar na criação. Não há como saber. De qualquer forma, continuo atraído pela experiência da investigação do pensamento e de como articulá-lo no papel.

As questões da abertura do conto-possível mencionado anteriormente misturam estética, futebol e corridas de cavalos. Os obstáculos criativos geraram uma espécie de nexo nostálgico, próprio do atual momento interrogativo de Sérgio.

O cenário do sonho é o Rio de 1955, época em que ele, então com catorze anos, existia sob um arco-íris de gravidades futebolísticas. Respirava Fluminense dentro e fora de casa, num hiperenvolvimento. O meia Didi era o grande ídolo tricolor; Castilho, o grande goleiro. O fato de o tio ter sido diretor do clube estimulava ainda mais o adolescente.

Pausa. O Fluminense terminou mal o século XX. Nem se compara com o time daquele tempo de glórias. Hoje, carrega a marca de ter cambaleado nos campeonatos estaduais e sofrido na terceira e segunda divisões do nacional.


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– Acompanhei alguns jogos pela TV e vibrei com a passagem da terceira para a segunda divisão – lembra.

Outro componente do conto-possível (ou possível conto) é um mitológico jóquei dos anos de 1950. Sérgio tentou até a internet, embora não prefira a rede como fonte principal ou habitual para consultas.

– Nos anos de 1950, eu era um viciado em futebol, páreos e apostas. Cheguei a furtar dinheiro de meu pai pra ir ao Hipódromo.

Mas os fatos às vezes lhe escapam. Seu conto-projeto empacou, por exemplo, nos dados concretos de um jogo Bonsucesso X Olaria. Em 1955, o Bonsucesso fez sua melhor campanha de todos os tempos no campeonato carioca, desbancando até o poderoso Botafogo de Garrincha.

 

*

Como tema, o futebol literário apareceu pouco em suas investigações. Uma pena. O conto “Na boca do túnel”, por exemplo, da coletânea O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982), é uma pérola, um clássico do gênero.

Nele, um técnico aleijado do São Cristóvão, que sonhou ser jogador, reflete sobre si e sobre o desenrolar de uma partida em que um time grande impõe goleada de 7 X 1 sobre o pequeno.

– Inspirei-me no demolidor Flamengo do começo dos anos de 1980.

Mais importante que o nome do time grande – o factual – eram as limitações do pequeno, o encanto das situações previsíveis, às vezes viciosamente repetitivas. E o técnico do pequeno, coitado, que já perdia por quatro a zero ao final do primeiro tempo, começa a divagar:

 

A paisagem nas cercanias de um estádio raramente é apreciada, porque as pessoas estão muito concentradas no jogo. Mas é fato experimentado por muitos que, em momento de choque emocional ou de grande frustração, se pode sofrer uma espécie de desligamento do foco da tragédia, o que nos defende da brutalidade do real. E, de repente,


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você se vê prestando atenção, se diluindo, numa porção de detalhes secundários. Igual, por exemplo, estar ainda no meio dos destroços de um acidente sofrido durante a noite numa estrada e pôr-se a observar o pisca-pisca dos vaga-lumes e o barulhinho dos grilos no meio do mato, o que já aconteceu comigo certa vez.

E é assim que observo, agora, uma nesga de sol a bater obliquamente sobre o gramado; uma gota de suor pingando do rosto do nosso lateral esquerdo, que corre, ofegante, rente à linha do campo, junto ao túnel. Vejo, também, o topo de montanhas da cidade do Rio de Janeiro, uma casinha lá em cima, torres de eletricidade. E finalmente um balão imenso que agora passa, além das marquises do estádio. Posso inclusive descrever sua alegoria: uma vênus, em azul e branco, toda nua, os contornos bem delineados dos seios, o sexo é mesmo o umbigo. Deve ter consumido semanas de trabalho de uma cuidadosa turma de subúrbio. No meio disso, penso ainda como é bonita esta cidade, como resiste a tudo o que fazem contra ela. Mas não deixo de pensar como devia ser ainda mais ofuscantemente bela a região do Rio de Janeiro antes dos europeus a descobrirem e foderem tudo. E introduzirem, muito mais tarde, um jogo chamado futebol.

 

*

Sérgio é um centroavante da auto-suspeita. Duvida tanto do ferramental quanto da madeira escolhida para sua carpintaria. Chega o momento em que é inevitável a prosa se perder naquele breve intervalo em que as palavras aguardam o clique da batuta para virar música, com ritmo, desenvoltura e força próprios.

– Temo escrever textos áridos, chatos de ler.

Arte, humanidade, representação, paixão, crítica à vida, crítica a si, à literatura. Todas essas contingências – da primeira à última e vice-versa - oscilam na cabeça do autor como o pêndulo de um relógio de parede. As contingências então se combinam e as realizações mais modernas se transformam em prosa de imaginação internacional. Tudo compensa o inútil orgulho de ser – ou pretender ser – essência pura. Sérgio Sant’Anna tenta o extrato do extrato.


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– Não sou criador de grandes universos literários ou um típico contador de histórias. Meus contos e novelas são tão procurados por mim que acabam soando intrigantes para o leitor.

Humanidade, autor, obra, originalidade, processo, imaginação, sentidos. Por que a atividade criadora engloba tantas instâncias? Em meio a essas malditas questões desafiadoras, é natural o escritor ficar desnorteado de vez em quando. E abalado, acuado, pondo em dúvida até as decisões corriqueiras, como sair ou ficar em casa, ir ou não ir ao consultório do psicanalista.

Só quem sofreu ou sofre a tormenta da lacuna – o papel branco ou a tela apagada diante de si, situações imponderáveis –, pode compreender por que um artista privado de inspiração se sente tão ameaçado. É quase uma ameaça de morte. Sérgio atravessou várias crises criativas na vida, mas esta agora tem sido de lascar. Reconhecemos que nosso encontro não ocorreu no melhor momento, mas ocorreu.

Ele diz ter concretizado muitos projetos ficcionais complicados, muito mais complicados do que o conto-possível “Páginas sem glória”. Mas está difícil. Sérgio parece antecipar, com frieza filosófica, uma limitação iminente.

– Meus defeitos e qualidades estão muito interligados. Sou um artista, não um escritor profissional, e tento acostumar com a idéia de me dar o direito de não escrever, se achar melhor.

O nó górdio: se Sérgio considerar que o conto ou a novela que estiver produzindo não vai acrescentar nada nem à literatura nem a ele próprio, não o submete à publicação.

– Posso até terminá-lo, mas não permito que o publiquem. Este é o meu juízo, apesar de saber que isso soa um pouco pretensioso.

Chega aos sessenta anos, mais de trinta de carreira – estreou com O sobrevivente (1969) –, tendo feitas inúmeras cirurgias difíceis. No texto e no corpo. Os fatos se impuseram nos últimos cinco anos. Sérgio praticamente perdeu a vista esquerda por glaucoma, seu entorno envelheceu e uma atmosfera sombria de desconfiança e reclusão se instalou em seu apartamento.


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– A falta do olho não me atrapalha enxergar. As conseqüências dessa perda são muito mais psicológicas do que reais.

Um crime delicado (1997), romance quase todo ambientado no bairro das Laranjeiras, é um enigma pictórico e existencial. Sérgio lançou-o com a convicção de haver escrito uma obra contemporânea e inquieta. A paixão de um crítico de teatro por uma pintora manca que acusa aquele de estupro é apenas isca para o leitor. Na obra de Sérgio Sant’Anna não é recomendável ater-se muito às sinopses. Se alguma realidade ele busca atingir é aquela outra, maior, oculta sob uma camada de disfarces.

 

*

Há escritores que fazem da repetição um valor, como Dalton Trevisan, muito admirado por Sérgio. Outros procuram mudar sempre. As pessoas têm ciclos. Algumas começam na maturidade, outras têm uma juventude brilhante e estacionam na maturidade. O caso mais clássico é o de Rimbaud que antes dos vinte anos já havia construído uma obra eterna.

Literatura acaba sendo um problema para Sérgio porque ele vive de crises, e morre de medo de estacionar. Num momento de depressão, como agora, isso pode ser fatal. O medo, que deveria ser o maior estímulo de um escritor, se transforma num vírus poderoso, que se multiplica: vêm o medo de se tornar ultrapassado, de topar com alguém que ridicularize tudo o que pensamos, problemas de saúde na família, separações, falta de dinheiro etc.

Quando Um crime delicado foi lançado, um resenhista reconheceu que Sérgio é dos poucos autores brasileiros vivos dispostos a se arriscar, mas parecia que vinha perdendo o entusiasmo, “ficando mais comportado”.

– “Bom comportamento” e originalidade são incompatíveis? É preciso quebrar o próprio recorde a cada corrida?

– Claro que não. Mas há resenhas escritas por desonestos que querem se promover afirmando, por exemplo, que a literatura brasileira acabou. É uma forma de o sujeito se apresentar como salvador, principalmente se for um daqueles que aspiram à notoriedade como autores.


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Para quem a procura do texto ideal sempre superou a matéria da própria escrita, a experiência instantânea, cotidiana, tende a ficar desnutrida, como se certa recusa o impregnasse, tornando-o um cético paralisado. Estamos jogados no mundo, ciclicamente absortos por perguntas que insistem em resvalar por todos os cantos. Mas, como diz o narrador de Um crime delicado, “comparações, metáforas, bah!, quão ridícula também pode ser a escrita”.

– É verdade.

Coincidentemente, o contexto de nexo nostálgico de Sérgio quando nos encontramos já estava refletido no romance à carioca vivido pelos protagonistas de Bossa nova. O Rio maravilhoso do filme de Bruno Barreto é mais que nostálgico. É o Rio de sempre, o que vive na memória de brasileiros e gringos pelas razões e pelos sentimentos mais diversos.

A percepção de Sérgio, porém, é outra. Ele, que já morou em Belo Horizonte, Iowa City e Paris, não perde de vista o Rio escalavrado pela má política. O terror está superando a poesia. Da janela de seu apartamento no bairro das Laranjeiras vê-se o Cristo Redentor, que lindo.

– Daqui também ouço tiroteios no Morro Dona Marta. Acho que estou fora do curso das balas.

 

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Como a cidade em que vive, um homem também não atravessa impune os agravos do tempo. Sérgio perdeu o monopólio da evidência em sua própria família. O filho, André Sant’Anna, “músico performático”, revelou-se escritor inquieto também. Amor e sexo receberam resenhas mais que generosas.

– Não tive participação na estréia de André. Não fui nem conselheiro, nem revisor, nem relações públicas. Mas gosto do que ele escreve.

A filha Paula escapou à tentação literária, mas Ivan Sant’Anna, irmão mais velho de Sérgio, falido ex-operador de Wall Street, se deixou levar pela tentação.


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Ivan se meteu na literatura com o objetivo publicamente assumido de escrever best-sellers e ganhar dinheiro. Os três pri­meiros livros que escreveu – Rapina (1996), Mercadores da noite (1997) e Armadilha para Mkamba (1998) – ,todos de ficção, devem ter vendido, juntos, mais do que quase toda a obra de Sérgio, que recebeu três prêmios Jabuti e já foi traduzido para o italiano e o alemão. Em certos momentos, o inferno é ser cult.

– Em relação a meu filho, não posso negar que tive uma pontinha de inveja, misturada com orgulho e satisfação. Inveja pelo fôlego dele, a força de realização própria da idade. De meu irmão, não. Ele e eu temos preocupações completamente diferentes. Já o trabalho de André tem pontos de contato com o meu – orgulha-se.

Entre outras coisas, Sérgio continua integralmente seguro de que a literatura só pode ser arte, nada mais.

– Meu modo de produzir ocorre na base da incerteza, diferentemente do de Ivan.

 

*

Há épocas em que a gente se ocupa mais que nunca com o passado. Revê as experiências que em algum momento nos custam a estabilidade afetiva e profissional.

– Na minha vida, sacrifiquei relações estáveis às vezes só para satisfazer algum desejo urgente de experimentar o novo. Hoje, não me sinto mais assim.

Em Iowa City, Estados Unidos, quando participou como convidado do Writing Program da Universidade de lowa, em 1970, um ex-beatnik reconheceu diante do colega Sérgio um desejo íntimo.

              Morei em lowa com Marisa Muniz, minha primeira mulher, e meus filhos. E o cara me confessou: “Sabe, eu queria ter tido uma família convencional”. Achei estranho no caso dele, que havia sido um andarilho. Às vezes vivemos o oposto do que real­mente desejamos.

Se dependesse só do desejo, Sérgio manteria contato mais freqüente com a turma de Belo Horizonte, cidade onde morou de 1959 a 1977: Fernando Brant, Tavinho Moura, Murilo Antunes, Sebastião Nunes, Branca de Paula e outros.


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– Acho que minhas amizades mais fortes ainda estão lá. Mas houve um afastamento inevitável.

Hoje aposentado do Tribunal Regional do Trabalho (trt), Sérgio é um sexagenário por imposição das células. Sua alma, apesar das fichas que começam a cair em seu telefone psicológico, parece bastante jovem. Ou será que conservamos demais certa imagem dos autores que admiramos? Bem, deixemos que a arte siga sustentando a vida por via das crises e das dúvidas que os criadores perfeccionistas mais têm.


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PARA GOSTAR DE SONHAR

Os causos de Antônio Barreto cumprem a promessa de ligar o interior e a capital, o passado e o presente, a catilografia e o iMac, a lenha e o microondas, os rinocerontes e os BMWs, Pedro Malan e o humanismo. Este “cumpádi” amorenado, risonho e meio bagunçado pra falar é o mais velho das sete crias de Nhô e Doneugênia, que lhe deu à luz em Passos, sul de Minas. Até os sete anos, porém, Barreto (é assim que ele é internacionalmente conhecido em Belo Horizonte) morou em Arraial Novo, hoje Fortaleza de Minas.

Depois de muitas farras e perdas materiais e humanas, ele agora transita entre um apartamento simpático na rua Campo Belo, bairro Anchieta, e uma casa de madeira no Retiro do Chalé, condomínio serrano nos arredores de BH. A casa foi ele mesmo quem ergueu, com a ajuda da eterna incentivadora Graça Sette, sua segunda esposa.

Já faz uns cinco ou seis anos que visitei Barreto no Retiro. A casa estava cercada de plantas e árvores. Bichos da redondeza, como sagüis, vinham bisbilhotar o sossego do poeta, para deleite de ambas as espécies. Lembro que a estrada que liga a BR-040 (BH-RIO) ao condomínio era uma serpente enroscada.

Várias vezes tive a impressão de estar numa espiral, e de que ela me conduziria ao nervo central de mim mesmo, ou a um lugar


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que não existe, como muitos que visitei no norte de Minas, no início dos anos de 1980, quando eu era projetista de redes de distribuição elétrica rural. A diferença é que nos cafundós que freqüentei não havia uma paisagem tão viçosa quanto a da Serra da Moeda, que acolhe o Retiro.

– A estrada continua enroscada – confirma Barreto, sorrindo e pitando.

Desta vez, Barreto me recebeu em seu apartamento de Belo Horizonte, onde trabalha e dorme parte da semana. Conversamos num escritório apertado, repleto de muitas coisas em seus lugares – devidos e indevidos. Cliquei a esferográfica e começamos a conversa num clima de reciprocidade.

Antes de tudo, Antônio de Pádua Barreto de Carvalho, 48 anos, é escritor no mais alto grau, e talvez o mais laureado da história da literatura brasileira. Sua obra inédita e publicada já faturou mais de 120 prêmios (contadas as menções honrosas – ou “horrorosas”, como ele diz) nacionais e internacionais. De pequenas e médias quantias, de repercussões ruidosas ou abafadas, por gosto ou necessidade existencial de participar, Barreto foi um verdadeiro bicho-papão em concursos de poesia, conto, romance e literatura infanto-juvenil.

Ele hoje não gosta muito de falar no assunto. Acha que sua glória acabou se tornando um estigma. Ou seja, em vez de focarem e discutirem obras, cismaram com as façanhas do dono delas, que começou a ser procurado só por causa de seus recordes. A mídia, como se sabe, é especialista em quantidades, grandezas e esquecimentos.

Barreto é capaz de falar de suas possibilidades e limitações com conhecimento de causa e naturalidade. A distância reconhece pio de passarinho, percebe quando as plantas entristecem, transita facilmente pelo mundo dos adolescentes. Já fez isso em relação a sua filha única, Larissa, do primeiro casamento. E um cara sensível, despretensioso, sossegado.

Mas podemos imaginar o que significa um jovem de 23 anos ser publicamente enaltecido em crônica pelo ídolo maior, Carlos


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Drummond de Andrade, em deferência às diabruras linguísticas de O sono provisório (1978), vencedor do extinto prêmio Remington de poesia. A honraria estará gravada para sempre, como o encontro dos dois em 1987, no Rio.

Barreto, sentindo-se o próprio capiau do interior, subia e descia com o elevador. Tava sem coragem de bater na porta do poeta, mesmo estando tudo combinadinho. Tinha a idéia de que Drummond era um sujeito fechado, que não gostava de dar entrevistas. Mas que nada, sô! Eis que Barreto depara com “aquela figura magrinha, simpática, olho azulim, todo assim, alegre, comunicativo, bom de piada”.

– Ele me disse que escritor, pra ser bom, precisa ter vivido um monte, e que um bom só se faz depois dos cinqüenta, sessenta anos. Na época eu tinha trinta e três anos e andava meio desanimado, achando que batalha de escritor no Brasil é troço inglório demais. Tava pensando até em desistir. Aí o Drummond falou assim: “Se você com essa idade fosse jogador de futebol e ainda não tivesse sido convocado pra seleção podia desistir mesmo. Mas pra escritor está ótimo”. Aí, cumpádi, eu suspirei.

– Dizem as más línguas que você e o Roberto Amado, sobrinho do recém-falecido Jorge, que também estava no encontro, brigaram por causa de uma caixa de fósforos autografada pelo Drummond no dia do encontro.

– Disputamos a caixa na porrinha, e eu ganhei.

– Você já entrou em algum concurso literário por dinheiro?

– Nunca. Meu objetivo era conseguir publicar aquilo que eu produzia. Sem a Bienal Nestlé de poesia, por exemplo, dificilmente eu conseguiria publicar Vastafala (1988).

– Antes, as comissões julgadoras se preocupavam em argumentar e divulgar os porquês de suas escolhas. De uns anos pra cá, alguns prêmios literários importantes ou deixaram de existir ou caíram no vazio.

Não acho que é um problema dos concursos em si, mas reflexo de uma crise de confiança que abala todo o país, em todos os


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campos. O Brasil global está cada vez mais tribal. Como sempre foi, aliás. – Neste ponto, demos uma boa gargalhada, juntos.

 

Que Barreto não nos ouça, caro leitor: além do Remington e da Bienal Nestlê, ele conquistou tradicionais prêmios para novos autores como o da Petrobras, o Cidade de Belo Horizonte, Cidade do Recife, o João-de-Barro, o Manuel Bandeira, o Tereza Martin, o Internacional da Paz (ONU), o Nacional de Contos de Paraná, o Guimarães Rosa, o da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil... Chega. Lá vem ele trazendo o café.

 

*

Depois do imprescindível primeiro café, Barreto subiu no palanque imaginário que criamos e leu para mim um fragmento de seu discurso moroso:

– Por uma literatura capaz de transformar a realidade brasileira em todos os seus aspectos, segundo o consenso e as necessidades encontrados no seio de seu povo, ou seja, em todas as suas classes, principalmente as oprimidas.

Explica-se. Em 1977, Barreto e um grupo de amigos redigiram um manifesto. Sim, o Manifesto Neo-realista Brasileiro, no qual propunham uma literatura: que fosse o retrato do povo brasileiro, da sua tragédia e de suas aspirações; que buscasse uma linguagem direta e acessível a todas as faixas sociais, culturais e econômicas; pela denúncia, contra o silêncio; pela verdade, contra o superficial; livre e libertária, que não se intimidasse diante de pressões estéticas; nacionalista mas não fascista, xenófoba, populista ou demagógica; pela comunhão dos povos e das culturas; contra o colonialismo e o imperialismo.

Ele é de um tempo – não tão remoto, por incrível que pareça – em que artistas trocavam idéias. Reuniam-se para discutir arte e fundamentar críticas a seus pares ou a sujeitos de geografias distantes, mortos, vivos ou sobreviventes do mesmo sufrágio. Ele e os seus eram tipos inquietos, boêmios, faladores, românticos, batalhadores, geniais em seus desatinos.


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Acima de tudo, pretendiam furar o bloqueio das editoras do Rio e de São Paulo e mudar os parâmetros da literatura ensinada nas escolas, que não conseguiam ir além do período romântico. Lutavam por um mundo menos vitimado pela autoridade, pela soberba e pelo elitismo. Mais: lutavam pela regulamentação da profissão de escritor. Uai, se todo mundo ganha pra fazer o que faz, por que escritor não pode ganhar?

– Vocês viviam numa espécie de laboratório a céu aberto.

– Sim, a gente experimentava, discutia os textos uns dos outros. Nos anos de 1960, em Passos, nossa patota era adolescente ainda, mas antenada com o mundo. Conhecíamos concretismo, realismo mágico, etcétera.

– Eram filiados a partido político?

– Alguns amigos meus, sim. Eu nunca fui. Mas era de esquerda. Na verdade, sou ainda, mas isso é muito mais uma retórica do que uma definição clara da minha pessoa. Os tempos mudaram.

– O que mudou?

– Hoje percebo embotamento das pessoas pra lidar com o texto alheio, pra adquirir experiência com o mundo do outro, com a natureza do outro. Nos anos de 1970 e parte dos de 1980 tínhamos necessidade de aprender quem fundou o quê.

– Têm-se a impressão de que não há espaço no mundo para tantos umbigos.

– É verdade – sorri. – E isso é terrível. A perda da capacidade de aprender afeta a sensibilidade. A experiência com a obra alheia, despida de mesquinharias, é extremamente importante na carreira de um artista. Perdemos, por exemplo, a noção de mestre. Os autores pouco se encontram, pouco interagem. Vivem com a sensação de que precisam reter tudo, cada informação, a cada minuto, a ponto de se descontrolarem ao perceber que não é possível digerir a “máquina veloz” toda. Vejo uma ansiedade danada de enfrentar tudo, de ser original o tempo inteiro, de ser “global”.

– Qual a conseqüência disso tudo?

– Uma delas é não conseguir se deter em nada. Cair em dispersão.


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– Como assim?

– Não conseguir parar para observar, selecionar, autodesenvolver-se. A velocidade é inimiga da contemplação. Acho que o melhor é selecionar com calma uma coisa e se deter nela.

– Você viveu épocas bastante distintas. Enfim, parece que faz muito tempo, mas, na verdade, foi ontem, coisa de vinte e cinco, trinta anos atrás. Você é de um tempo em que se construíam grandes amizades, em que havia muito coleguismo entre escritores. Pergunto: e a amizade, ela também está em falta no mercado global?

– Até há pouco tempo a literatura era feita entre amigos. Hoje, não sei. Drummond dizia que nenhuma literatura supera a amizade. A vida vem antes. Mas parece que os escritores estão mais preocupados em ingressar na engrenagem do mercado, não se importando muito com as regras impostas a eles.

Hoje, Barreto tem plena consciência de que a era dos manifestos acabou. Não há mais dadaístas, concretistas, surrealistas etc. tentando dar as cartas. Muita gente se encantou com os discursos dos grupos de vanguarda. No fim, restou-nos apenas uma certeza: a de que há cada vez mais trabalhos artísticos e menos soluções para os problemas do mundo. Por outro lado, cadê a utopia?

 

*

Barreto adaptou a ideologia socialista dos anos de 1970 à era digital. Continua escrevendo muito, mas também trabalha com afinco pela formação de cidadãos mais capazes de ler o mundo, no sentido amplo do termo. Sonha com estudantes mais críticos e atuantes.

Para ler o mundo (2001), em parceria com as professoras Graça Sette (a esposa), Maria Ângela Paulino e Rosário Starling, é um livro concebido para provocar a curiosidade dos alunos de 5ª a 8ª série. A salada lingüística e cultural de Para ler o mundo inclui clássicos literários, textos jornalísticos, música, publicidade, charges, tirinhas, caricaturas, bulas de remédios, cenas de filmes, causos, lendas, mitologias, fatos, discursos.


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Não é a primeira contribuição de Barreto “para um futuro melhor”. O mesmo grupo de quatro inquietos pesquisadores já produziu Transversais do mundo – leituras de um tempo, pelo qual receberam o prêmio Jabuti de 2000. Transversais, na verdade, é um excitante estudo de 28 das 122 crônicas que Barreto publicou no jornal Estado de Minas, entre 1997 e 1999, quando ocupou meia página domingueira do caderno de cultura para falar de ética, cidadania, sexualidade, consumismo, ecologia, arte, imigração e outros temas ligados ao comportamento humano e desumano em geral.

— Barreto, já ouvi muitas insinuações de que ficcionistas, poetas e ensaístas invadiram a praia dos livros didáticos e ocuparam um espaço que não lhes cabe. Você se considera um forasteiro no campo dos didáticos?

— De jeito nenhum. Acho interessante os ficcionistas contribuírem. O trabalho fica mais criativo e prazeroso. A gente acaba bolando exercícios e atividades que fogem ao padrão do pensamento estritamente racional. Esse tipo de contribuição, aliás, é histórica. Um processo mundial. Monteiro Lobato escreveu livros didáticos. Olavo Bilac também. E hoje temos Ruth Rocha, Anna Flora, Rosa Cuba Riche, Ziraldo e muitos outros. Fora do Brasil, Umberto Eco, ítalo Calvino, Gianni Rodari, Rugero Pierantoni e John Updike também já passaram pela mesma experiência.

O contexto da infância de Barreto também parece distante no tempo, embora tenha acontecido ontem. Ele sempre fez poesia com a vida, o que facilita a sua entrada no universo dos moleques. Quando garoto, inventava palavras, observava formigas, imitava passarim, jogava bola de gude, foi ponta-esquerda no futebol (consta que numa mesma partida marcou dois gols e defendeu um pênalti). Pescava baleias no rio Grande, caçava lobisomem na mata, nadava pelado em córregos, conversou com vagalovnis (cruzamento de vaga-lume com disco-voador). Como demorou a conhecer o mar, fugiu pra Lua. Leu e releu tudo o que lhe caiu nas mãos, viajou meio mundo de carona, de camelo, de avião, de navio, a pé.


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Até hoje é assim, movido a energia cósmica, pronto para se perder e se encontrar. Mas fique um tempo de olho em sua cara redonda, risonha, e Barreto te transmitirá uma serenidade incomum. Como é comunicativo, a molecada faz festa com ele. Ninguém toma tento; como é bonachão, macaquim vem comer na sua mão. Seu Brincadeiras de anjo (1987), entre dezenas de obras infanto-juvenis, já vendeu mais de 160 mil exemplares. E o romance juvenil Balada do primeiro amor (1997), na 16ª edição, vai virar filme nas mãos de Geraldo Veloso e Aluízio Salles Jr.

Barreto é culto, não intelectual. Compreende o mundo entregando-se a ele por inteiro. Paletós de analistas aprumados, frios e distantes não servem nesse escritor. Se lhe perguntássemos, por exemplo, qual é o sentido da vida, Barreto certamente responderia algo mais ou menos assim: ir vivendo.

Já foi engraxate, cobrador de ônibus, verdureiro, vendedor de enciclopédia malsucedido, estudante de História, de Letras, de Jornalismo, líder estudantil, fundou associações de escritores, foi cronista do Estado de Minas e júnior na turma da revista Inédi­tos. Oswaldo França Júnior (vizinho, amigão e falecido), Murilo Rubião, Roberto Drummond, Luiz Vilela, Luiz Fernando Emediato, Sérgio Sant’Anna, Ivan Ângelo e outros.

– Por que você acha que a mídia de circulação nacional não gosta de autores bem-humorados, “de bem com o povo”, como você?

– Durante entrevistas, percebia que esperavam de mim um sujeito sisudo, que soubesse me classificar, falar criticamente da minha obra e opinar sobre todos os assuntos. No geral, sou mau marqueteiro. Não fico ligando pros caras dos suplementos de cul­tura, por exemplo. Pra nada. Meu negócio é escrever. Tem editora que aprova o que eu faço, outras que não aprovam. Nada mais posso fazer.

As editoras de infanto-juvenis e didáticos trabalham com a noção – bastante ultrapassada, aliás – de “um escritor padrão para uma criança padrão”. O autor tem de contar o óbvio e quase dar plantão nas escolas. Se possível, plantar bananeiras, fazer graça, fingir que é criança para conquistar pela exterioridade.


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– Aos olhos do mercado editorial, crianças são iguaizinhas aos pais. Não têm tempo e não gostam de ler.

– Criam restrições por causa disso?

– Já me pediram pra abolir certas metáforas, pra não deixar os professores, em geral despreparados, lidar com textos “acima da média”. Ah, tem mais: pedem pra mesclarmos personagens conforme o momento, seguindo o politicamente correto, e com narrativas lineares.

Ao que parece, estão minando a verve legada por Ana Maria Machado, Lygia Bojunga Nunes, Sylvia Orthof, Ruth Rocha e Monteiro Lobato, para citar apenas alguns autores infanto-juvenis de qualidade. Hoje, manda o esquema auto-explicativo de Harry Potter, que, segundo Barreto, atende a todas as demandas do comércio internacional.

— Se esquecem de que qualquer história infantil pode ter uma carga poética sedutora. Prefiro não sofrer com isso, até porque a minha linguagem fundadora é a poesia. Seja história pra criança, seja pra adulto, primeiro eu penso ela em versos. Só com o tempo transponho a história pra prosa.

Em maio de 2001, Barreto publicou outros dois livros infanto-juvenis - O menino que não sonhava só e Zoonário — , por uma editora recém-criada com uma proposta inovadora, a Mercuryo Jovem. Toda a obra de Barreto construída supostamente para jovens está nos catálogos do International Board of Books for Young People, da Unesco.

 

*

Eis que o que parecia a sorte grande do poeta se transforma numa enrascada. É o seguinte: no final dos anos de 1980, o eterno autor-revelação do Brasil passou a ser visto como uma grande descoberta da editora do velho José Olympio (1902-1990), imortal caçador de novos talentos.

Encantaram-se com A guerra dos parafusos, vencedor de vários prêmios Brasil afora — ops, falei. Contrataram o romance demolidor, o balaço que Barreto vinha guardando fazia dez anos


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para realizar seu sonho de finalmente romper as barricadas que se haviam formado ao redor do mercado editorial brasileiro.

Achou que, com a acolhida positiva que o livro tivera antes, iria poder desengavetar sua produção até então: três novos romances, uma coletânea de contos e três coletâneas de poesia, entre elas Ópera das máquinas e Urro, todos premiados (uh, escorregue! de novo!). Pois engavetados estão, agora por opção. Barreto é um cara superexigente.

— Confio no meu taco como autocrítico porque sei que pratico experimentalismos que requerem mesmo um certo tempo de gaveta. Pra alinhar e balancear as quatro rodas, entende?

O velho “Jotaó”, como José Olympio era conhecido, deve ter-se remexido no túmulo, porque seus seguidores lançaram A guerra dos parafusos (1992) com força. Mas, paradoxo dos paradoxos, essas coisas que até Deus duvida, não conseguiram fazer uma distribuição decente do livro, que acabou imerso numa zona escura. Muita gente conhece A guerra, e quase ninguém o leu.

Depois desse episódio, Barreto foi outro. Enveredou por outras paragens, perdeu-se, bebeu todas, desiludiu-se. Mas agüentou o tranco. Ergueu a casa no muque. Poeta precisa de casa. Sem uma, fica ainda mais difícil mitigar os embaraços.

 

*

Na euforia, talvez Barreto tenha se esquecido de que A guerra dos parafusos não é propriamente um livro fácil. Ele brinca com gêneros como o faroeste e o policial; faz paródias e referências a textos bíblicos; alterna vários focos narrativos, em primeira ou em terceira pessoa; os personagens se mimetizam, compõem epígrafes que desfecham; há relatórios, documentos, fichas médicas de pacientes loucos, histórias dentro de histórias; linguagens metidas, gíria de peão de obra, empáfias; colagens de jornais e pastiches se misturam num todo que parece recusar permanentemente qualquer sinal de elitismo.

Por incrível que pareça, deu calmaria a um verdadeiro turbilhão. Confesso que me inspirei em A guerra de Barreto para


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escrever meu romance-reportagem Os estrangeiros do trem N (1997), sobre imigrantes brasileiros transplantados para Nova York, um livro infinitamente mais humilde e tão desconhecido quanto o de Barreto. Enquanto fazia minhas entrevistas e pesquisas nos Estados Unidos, entre 1993 e 1994, devorei A guerra como um faminto atirado sobre o prato de comida.

O super-romance de Barreto trata da incômoda transposição de um bando de sujeitos aparentemente comuns da cidade grande para o deserto, em defesa contra a recessão no Brasil e bem no meio de uma guerra paranóica. Narra a solidão no exílio e avisa, na primeira página, que tudo mais ou menos pode ser resumido em um “Folhetim picaresco e tragicômico sobre a solidão ferroviária dos andarilhos da pátria estacionada, ou Pequeno Manual de Sobrevivência no Inferno”.

Entre o Brasil e o multicultural acampamento das obras da autopista Bagdá-Akashat, em pleno deserto, muitos brasileiros iam e vinham, como peões (parafusos), funcionários administrativos (porcas) e graduados (arruelas). Barreto era então projetista-desenhista, seu ganha-pão durante décadas, e entrou no páreo entre 1980 e 1982, em plena guerra Irã-Iraque.

Socou, levou, testemunhou, divertiu-se. Arrastou a pele na areia tórrida do deserto. Atirou-se tão de corpo e alma na empreitada, pela qual recebeu US$ 6 mil de adiantamento e uma bolsa da Fundação Vitae, que se afastou do mundo. Guiava-se, entre outras coisas, pela ilusão de exorcizar todos os seus fantasmas, de cuspir o coração pela boca.

O que foi é também o que não foi, não o que devia ser. A partir de Bagdá e Ramadi, como funcionário da falida Mendes Júnior International Company, Barreto conheceu os múltiplos mundos que comporiam seu épico sobre os patíbulos da solidão e da loucura. A guerra é tão visceral que adquiriu vida própria mesmo contra a vontade do diabo. Seus personagens são inesquecíveis, como o desgraçado operador de máquinas pesadas Pedro Marráia, “parafuso” que de vez em quando crava suas impressões de insider em meio às várias falas que se sobrepõem no texto:


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O ônibus em movimento. O sol e o calor do meio-dia transformam o pau-de-arara num forno. Tiramos as camisas. Mascarenhas manda vestir de novo. Vai ter mais revista pela frente? Pode ser. Comemos o rancho das marmitas e o pão com salame. Caravanas de camelos continuam passando ao longe, entre colunas de tanques, baterias e canhões. Bebemos água fervendo. É o inferno! Nem dá vontade de arrotar. Então percebemos que, às vezes, o deserto se abre na distância. E de dentro dele saem aviões, que rugem sobre o teto dos ônibus, em vôo rasante. Os peões se amedrontam, gritam por socorro e choram. É o fim do mundo, meu Deus! O que é que eu vim fazer aqui? Igualzim tanajura saindo do cupim! Tirem-me daqui, tirem-me daqui! Passamos por uma aldeia. Abu-el-Jir. Dois cadáveres pendem de uma forca, ao lado da estrada. Jeguinho vomita, passa mal. Leondes faz o pelo-sinal, e puxa uma novena pela alma deles. Cheiro insuportável de carne humana podre. Mascarenhas manda o motorista árabe pisar fundo no acelerador. O vento quente se entufa pelas janelas abertas, queima o rosto e a alma. Os peões dormem de novo, vencidos pelo calor. “Minh’alma agora é deles”, penso. “Seja o que Deus quiser.” Um lobo do deserto cruza na frente do ônibus, com uma cobra presa entre os dentes. O motorista árabe freia e xinga alguma coisa. Ninguém acorda. Parecem mortos, escornados uns sobre os outros. Escombros de uma guerra que mal começou. (...) Carregam minha mala e entramos por um corredor. No fundo do corredor, um quarto. No quarto, uma cama. E na cama desmorono os escombros do que restou da primeira batalha. A rosca espanada de um parafuso bambo, frouxo, usinado em torno da solidão. A engrenagem ruge. Engato uma ré e o trator se desmonta.

 

*

Saddam Hussein, onde andarás? Criaturas desvairadas continuam causando desordens e mortes nas nevralgias do Oriente Médio. Fanáticos religiosos agora invadem jatões no Ocidente não para pedir resgates, mas para estilhaçarem-se eles próprios contra edifícios monumentais levando consigo outros duzentos, talvez trezentos inocentes. Impérios arrogantes atacam e contra-atacam.


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Mas o mundo certamente não é feito só de desertos. Porque quando a gente quer, a gente identifica um sabiá cantando às cinco da manhã, como faz Barreto quando acorda; nota as esquadrilhas de maritacas cruzarem ruidosas o céu e nem pensamos em aviões de combate ou toques de recolher; enfia a cabeça debaixo de uma cachoeira gelada e esquecemos as bombardas.

Hoje, Barreto periodicamente passa em revista as tropas de paz aquarteladas no Retiro do Chalé, na vistosa Serra da Moeda: sabiás, tangarás, jacus, canários, lagartos, gambás, macacos, corujas, tucanos, maritacas, quatis, jaguatiricas, borboletas e formigas vêm se apresentar para a ordem-unida. Saúdam o menino que brincava com os anjos e que nunca sonhou só.

Cinco da matina no Retiro, cinco da tarde em Gordólia, o país de mentira de O menino que não sonhava só, onde o lema das pessoas é “quanto mais se sonha, mais se come”. Barreto já plantou uma nova muda:

 

As pessoas também são de mentira, mas fazem de conta que é tudo verdade. Sabe por quê? Porque precisam sonhar, inventar, imaginar as coisas, para continuarem vivas. Por isso esse lugar se chama só assim: Imagina Só. Toda tardinha, em Imagina Só, as pessoas se reúnem nas portas de suas casas. Essa reunião é para cumprir uma tarefa muito importante: contar casos, contar sonhos. Sonhos e desejos que cada um tem para o dia seguinte...

 

Quais os seus, caro leitor?


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O ARTESÃO DO CONSOLO

Um cidadão tímido, solteirão e autodidata circula pelas ruas do centro do Recife em horários regulares. O que se sabe é que o tal é um senhor que expõe o grisalho ao ensolarado nordestino a partir do número 105 da Sete de Setembro, uma rua descontínua e dificultada, estreitada por ambulantes que a enfeiam com restos de tudo o que a civilização industrial produz sem pagar impostos.

Gilvan Lemos, 72 anos, é o generoso senhor que emerge e imerge silenciosamente nesse burburinho suado. Está tão dentro e tão fora do cenário que talvez ele nem perceba mais que os odores do arredor se diversificaram a ponto de não mais exalar; que as paredes descascadas dos edifícios passaram, contraditoriamente, a embelezar o cenário; que as anacrônicas grades de ferro das portas e janelas não protegem nada, embora transmitam uma doce ilusão de segurança.

No décimo segundo andar do vaivém, os vizinhos conhecem o velho e bom Gilvan, que escreve por vício e prazer, sem martírios. Mais precisamente: escreve ficção, gênero que tem levado pernada dos tempos (os novos e os antigos) como vira-latas em porta de botequim. A literatura de ficção parece que já aprendeu a gostar de apanhar.

Foi-se o tempo em que admiradores esperavam os grandes autores na porta das leiterias da rua do Imperador, como fazia o próprio Gilvan para ver José Lins do Rego.


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— Escritores eram como artistas de cinema.

Há um consolo, entre os muitos de Gilvan: os poetas de hoje estão em pior situação e são capazes até de responder mal a quem gritar “ô, poeta!”, ou mesmo sair correndo. Gilvan está salvo da suspeita de inutilidade que ronda os cabras cantadores armados de verso.

— Na fossa ou apaixonado, nunca me atrevi a escrever poemas.

Mas já publicou duas dezenas de livros, entre eles os romances Noturno sem música (1956), Emissários do diabo (1968), O anjo do quarto dia (1976), O espaço terrestre (1993) e Morcego cego (1998). Uma boa obra (quando persistente, coerente e gratificante) dissipa qualquer aura folclórica.

Gilvan é um escritor nordestino e obscuro, como ele próprio se define. Mas não cultua a reclusão. Aconteceu de desde muito cedo as negativas lhe calharem. Sua vida é feita de nãos no atacado e sins no varejo. Não o turvaram, por exemplo, os holofotes da fama; não o seduziram os movimentos, os encontros, as conferências, os debates e as noites de autógrafos (nem as de seus livros); tampouco as academias e sociedades de letras; nunca teve os amigos certos, os pistolões, as cartas de recomendações, os QIs; diplomas escolares, apenas o do curso primário - isso por culpa da oportunidade, ou melhor, da falta de.

Filhos? Não. Esposa? Não também. Parou de fumar? Para sempre, não.

Nada de incompatível, nada de inviável até aí. Outros nãos melhores se impuseram às margens do rio Capibaribe, que pode ser visto da janela do apartamento de Gilvan em Recife: o atacado não lhe pesa nos ombros; as demoras para obter sins, por correio ou telefone, não ferem sua dignidade; o silêncio às vezes ignorante dos críticos não arranha sua lentidão certamente incomum nesses tempos em que é preciso ficar tagarelando sobre a própria auto-imagem, engolindo a previsibilidade dos metiers a fim de obter um espaço de divulgação literária que vem sendo reduzido num crescendo.

Quer saber? Gilvan é um sujeito resoluto:


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— Minha capacidade de influenciar pessoas ou fazer amigos é nula. Perdi a esperança de ser famoso, passou minha vez.

Mas ele diz isso entre dois risos ingênuos, tendo o auto-retrato na parede da sala como segunda testemunha. O auto-retrato também vê o Capibaribe, e daqui quase dá para ver o atual prédio do INSS (antes IAPI, depois INPS), onde Gilvan trabalhou décadas até aposentar-se (1980) e poder apenas ler e escrever, o que de melhor a escola pôde lhe ensinar nos anos de 1930.

A vida de funcionário público o poupou dos calos que marcam a maioria de seus contemporâneos de São Bento do Una, onde nasceu, em 1928. Naquele tempo a lenha estalava no fogo, areavam-se as panelas até virarem espelho, mulheres transitavam com trouxa de roupa na cabeça, bacamartes estrilavam à toa.

Os calos de Gilvan são de outra natureza. São de labutar com as palavras desde muito cedo, de lutar pelos meios, não pelos fins, de começar ilustrando revistas de histórias em quadrinhos com pena comum e tinta Sardinha.

O garoto caçula dos cinco irmãos já desejava piamente virar autor e desenhista de histórias em quadrinhos. Optar pela escrita foi conveniência.

— Era mais fácil porque não precisava desenhar.

A mãe costurava tendo sempre ao lado da máquina algum romance clássico, que Gilvan apanhava de vez em quando como bisbilhoteiro mirim.

Aos quinze não precisou mais interromper as leituras da mãe. Empregou-se no escritório de uma fábrica de laticínios da qual um dos sócios era o pai do cantor e compositor pernambucano Alceu Valença. O salário era consumido em livros pedidos via reembolso postal. Dos brasileiros, leu primeiro José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Lúcio Cardozo. Em São Bento do Una não tinha biblioteca, jornal nem livraria.

— Só um cineminha com três sessões por semana.


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São Bento do Una, agreste meridional de Pernambuco, entre Caruaru e Garanhuns. Duzentos e trinta e nove quilômetros do Recife. Lá havia muitas cobras. São Bento é o santo delas, as cobras. Una é o nome do rio que deveria banhar a cidade. Não o faz mais porque padece de secura. Curioso (para as gentes do Centro-Sul) que frentes frias possam importunar o inverno de uma cidade naqueles paralelos equatoriais.

— Pois a temperatura em São Bento do Una pode chegar a dez graus!

Nos anos de 1940, a viagem até o Recife custava um dia inteiro. Enfrentavam-se cabras e lagartos. Para um aspirante a escritor, ir para a capital era destino encouraçado. Mas, até chegar o infalível dia, era preciso contornar as carências culturais e materiais de seu mundo.

Gilvan diz que tem saudade da terra natal. Mas vivia contrariado lá: tinha a doença dos seus olhos, a pobreza da família, a cidade atrasada, a falta de estudos e de perspectivas. Salvou-se lendo; lendo e escrevendo.

— Lia e escrevia desordenadamente, orientado apenas por minha irmã mais velha, que era um pouco menos ignorante do que eu. Foi ainda em São Bento do Una que publiquei meu primeiro conto na revista Alterosa, de Belo Horizonte, e me tornei gênio municipal.

— Ficou badalado.

— Sim. Passei a escrever crônicas para o serviço de alto-falantes da cidade. Vivia sob uma ansiedade tremenda, sonhando e sonhando em ser escritor.

— Um escritor por todos os poros?

— Não, era só por dentro. Por fora eu era um rapazola normal. Participava dos bailes do União e jogava de ponta-direita no Comércio Sport Club.

Gilvan saiu de São Bento do Una sem nenhum lastro cultural, sem curso ginasial (muito valorizado na época), sem convivência literária ou experiência de vida metropolitana. Chegou no Recife com 21 anos incompletos e estranhou.


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— Ganhava pouco na Sul América Seguros de Vida e me faltava uma convivência afetiva. Desde 1952 passei a pertencer aos quadros do ex-IAPI, onde ingressei por concurso público. As finanças também melhoraram. Só a partir de 1956, com a publicação do meu primeiro romance [Noturno sem música], comecei a me relacionar com gente da literatura.

 

*

Nem os sumidos escapam do esbarrão de algum titã literário. Gilvan trombou com dois que tiveram grande importância em sua vida: o escritor também pernambucano Osman Lins (1924-1978) e o ex-diretor da editora Civilização Brasileira, Ênio Silveira (1925-1996). Ambos o apadrinharam espontaneamente, sem maquinações.

Sabe esses prêmios literários que não repercutem (um problema que não pode ser só dos prêmios) no Brasil? Pois nos anos de 1950 repercutiam um pouco mais. Um desses prêmios - o da Secretaria de Educação de Pernambuco, em 1952 - chocou-o com Osman Lins, seu ídolo, no segundo lugar da classificação geral. Quatro anos depois, quando Noturno sem música foi lançado, Osman escreveu em O Estado de S. Paulo este outro bem-guardado consolo:

 

Dentre todos os romancistas novos que conheço, Gilvan Lemos é talvez o que parece mais prodigamente dotado. E um dos pouquíssimos romances de autor novo que merece leitura e comentário.

 

Antes de deixar São Bento do Una, Gilvan cogitou de ir direto para o Rio de Janeiro. A mãe o amedrontou: você vai sofrer muito; além de perigoso, tem a tuberculose. Presta atenção, Gilvan, ou você vai pegar tuberculose! Praga de mãe é fogo à lenha. O submisso Gilvan acabou mudando de idéia.

Eu então ficaria no Recife mesmo. Por uns anos, até me adaptar à vida em cidade grande. Depois, sim, iria para o Rio.


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Em 1953, houve a perspectiva de uma permuta com um funcionário do IAPI interessado em se mudar para Recife. Mas a notícia do câncer da mãe veio quase junto. Gilvan ficou - está - no Recife, e sem condições de evitar alguma forma de reconheci­mento pelo que produziu até hoje.

— Se digo que perdi a vez de ser famoso não me refiro a obter dinheiro ou bajulação. Apenas gostaria de não ter de me preocupar se meus livros serão publicados e quando. Esse tipo de espera, na idade em que estou, é torturante.

Depois da publicação de Morcego cego (1998) pela Record, Gilvan contava que seu sarcástico Vingança de 'desvalidos fosse para o prelo em seguida. Não foi. Luciana Villas-Bôas, diretora editorial da Record, ligou dizendo que, tendo em vista aquelas séries incontáveis de milhões de acontecimentos, só seria possível publicá-lo em 2004 (estávamos em 2001, lembrem-se).

— Estarei muito mais velho até lá.

Gilvan achou que Vingança de desvalidos não devia esperar muito porque trata de tema atual. Preferiu então conceder os direitos autorais a uma editora do Recife. Publicaram a obra que ilustra em linguagem chula as agruras da classe média, os apertos, a desesperança ao final da era FHC. A obra tem sabor popularesco. A vingança está em se reunir habitualmente na Leiteria Vitória para beber cerveja e falar mal do governo. Irônico, cáustico e rude, como Gilvan talvez jamais seja na vida. Ele parece incapaz de vingar uma mosca.

— Tinha de ser em linguagem rude. Colhi as críticas nas ruas, prestando atenção nas pessoas.

 

*

De modo geral, seus livros não seguem esquematismos. Gilvan não se curva às vertentes memorialísticas, aos desgastes do embate ideológico, à matriz do paternalismo político, ao maniqueísmo rasteiro, às revoltas organizadas por jagunços e às bárbaras repressões dos coronéis.

A antropologia do tempo, porém, lhe inquieta. O ótimo Espaço terrestre, por exemplo, é uma irresistível história de várias gera-


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ções de uma família luso-tropical que funda Sulidade, misto de São Bento do Una e Macondo. O que prevalece, entretanto, é o fulcro de uma espécie de casa-grande e senzala pré-terceiro milênio.

Há os chistes, os sujeitos desalmados, relevos, vegetações, fauna, flora e geografia próprios. Mas sem releituras pós-modernas. Por que inventar demais se, na verdade, pouca coisa mudou muito? Tem isso, o Brasil é um país imenso que sobrevive estreitado. Sazonal em seu desenvolvimento, o país de Gilvan sofre de secura como o rio Una. A diferença é que às vezes transborda. A ficção de Gilvan Lemos lida com um Nordeste atrasado em itens já resolvidos até nos grotões do Centro-Oeste.

— O mais confortável, para mim, é o neo-regionalismo autobiográfico, sem pretextos políticos.

Para os padrões de hoje, é uma equação de resultado (comercial) difícil. Não se trata de fartura ou escassez de leitores. Houve um tempo em que ser escritor, e nordestino, e regionalista, e realista, e crítico social, era moeda de troca. Não mais. Ainda que não morem na periferia, são periféricos os escritores nordestinos (e não só os nordestinos) que hoje tematizam a desigualdade social em plano pré-industrial. Não viram mercadoria, contudo. Fica-se na intrigante condição simultânea de vivos e mortos. Consolo ou desconsolo?

O mundo entrou no Recife como um trator, mas a originalidade da cidade continua solta, alimentada pelos mesmos mitos e coronéis que a sufocam. A história do estado remói idealismos, violências e frustrações. Pernambucanos já tentaram formar um país. Gilvan, a rigor, não deseja inventar nada. Não é do seu feitio.

— Não me proponho a desvendar nem a linguagem, pra você ver. Ou então é porque depois de certa idade vive-se para trás. E vive-se mesmo. Te falo isso por experiência própria.

Digamos que, proporcionalmente, o atual número de leitores de ficção equivalha ao mesmo número dos anos de 1950. Nada mal, mas hoje há mais autores que editoras, mais editoras que livrarias, mais títulos que leitores, mais livros que espaço para acomodá-los nas estantes e na mídia.


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— Os cadernos culturais daqui tratam de cultura em demasia. Só que, para esses cadernos, cultura é apenas exibições de bandas de toda espécie, rodas de coco, concertos de rabecas, bumba-meu-boi pastoril, tchan, cantorias recitadas etcétera. Ou seja, pouco ou quase nada sobre livros.

— No entanto, todo dia aparece um autor.

— Todo santo dia. — Brinca. — Incrível.

 

*

Abrindo um pouco mais o leque do calendário cristão, encontra-se por acaso uma justificativa longínqua possível para o celibato de Gilvan. Sua infância-pátria foi marcada por uma doença nas vistas - “conjuntivite primaveril”, segundo o povo. Até mudar para Recife e tratar-se, não tirava os óculos escuros. A luminosidade curvava o escritor. Cílios caíam, pálpebras inchavam, o globo lacrimejava.

— Tinha vergonha dos meus olhos e, por receio, não me arriscava muito com as moças. Fui envelhecendo. A partir de certa idade, um homem começa a adquirir manias. Aí é difícil. Hoje acordo cedo todos os dias, mas com a maior raiva do mundo.

Antes de se aposentar, Gilvan sonhava poder ficar mais tempo na cama. Acontece que com o tempo também o sono vai ficando incompleto. Não “anda para trás”, como quando se está velho, mas a gente acaba acordando até quando não quer. Fico pensando onde se escondem as demais pessoas modestas, singelas e generosas como Gilvan. Ele existe mesmo? Puts, me esqueci de descrevê-lo fisicamente. Ai de mim.


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UNA CUEVA EM CARTAGENA

O mar suavemente acinzentado, embora cálido, não faz jus a Cartagena das Índias, uma das cidades históricas mais bonitas da América do Sul. Brisa refrescante atravessa seu entardecer duradouro, às vezes acompanhado de gotas pesadas de chuva que só fazem elevar as temperaturas. É lugar para quem não se deixa enganar por compromissos e horários; para quem se diverte com intuições mais do que com elaborações sofisticadas; merece cânticos históricos e até os mais fantasiosos romances impressionistas.

Pelas calçadas das ruas estreitas, rodeadas de edificações coloniais multicores, crianças e adultos jogam dominó, xadrez, damas; ou sentam-se à porta de casa para conversar fiado com os vizinhos enquanto o calor e a umidade do ar lhes empapam a roupa minimamente necessária; os rádios das bodegas reproduzem a todo volume os ritmos cubanos, a salsa porto-riquenha, boleros, a cumbia e o vallenato colombianos. Carruagens inventam tours, táxis caçam passageiros e ambos poluem. As barbearias servem às lamentações masculinas tanto quanto as rinhas de Ninguém escreve ao coronel (1968).

A essa altura, existem dois Gabos na cabeça de cada colombiano, um real e um virtual. Para muitos escritores, ele é o modelo do que querem ser. Para muitos leitores, uma espécie de amigo


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com o qual se comunicam por meio dos livros. Como ele é um gestor de boas ações em diversos temas — paz, Cuba, direitos humanos, libertação de seqüestrados etc. —, e o faz geralmente em segredo, as pessoas imaginam histórias sobre coisas que Gabo fez e decidem que tal e tal coisa foi feita por ele. Algumas vezes é verdade; noutras, ninguém sabe, mas os colombianos gostam de imaginá-lo assim.

Gabriel García Márquez possui uma ampla casa em Cartagena, exatamente ao lado do antigo convento Santa Clara, erguido em 1617. As muralhas da cidade-forte separam a casa do mar, mas não roubam a vista oceânica do pavimento superior, onde fica o escritório. Cartagena, alvo de incontáveis ataques de piratas no passado, é também um dos mais importantes cenários das obras de Gabo.

O amor nos tempos do cólera (1985) expõe signos urbanos facilmente localizáveis na cidade, incluindo alguns pontos turísticos, como a Torre del Reloj e o Portal de los Dulces, onde os personagens Florentino Ariza e Fermina Daza se encontram pela primeira vez e a partir de então atam-se por mais de meio século.

De amor e outros demônios (1994), por sua vez, é inspirado em reportagem escrita pelo próprio Gabo em outubro de 1949. À redação do diário El Universal havia chegado a informação de que iriam esvaziar as criptas funerárias do antigo convento Santa Clara, hoje convertido em hotel cinco estrelas.

Eram três gerações de bispos, abadessas e outros personagens notáveis dos tempos em que Cartagena era a residência dos vice-reis do Novo Reino de Granada. O jovem jornalista de vinte anos percebeu que a notícia estava no terceiro nicho do altar-mor. Aberta a lápide, uma cabeleira viva, cor de cobre intensa, se espalhou para fora da cripta. Era a cabeleira da Sierva María de los Angeles, e tinha mais de vinte metros de comprimento.

Cartagena não supera Macondo como espaço ficcional declarado, obviamente. Macondo é o mais precioso mosaico mágico-realista do Caribe. Mas Cartagena, como capital do reino de influências do autor, ajudou a inspirar a própria Macondo: mulheres de


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seios fartos pedindo passagem e equilibrando na cabeça bacias de frutas; negrinhos empurrando carroças de verduras, e picolés, e cocadas, e arroz de coco, e empanadas, e rum; mulatas de cabelos alisados desfilando em microssaias; mulatos com chapéus a la Compay Segundo; flertes entre olhos amendoados. Todos carregam o remexido odor multitudinário mencionado em O enterro do diabo (1957).

— Gabito adora se meter nessa coreografia — garante o orgulhoso Jaime García Márquez, oitavo dos onze irmãos (são mais nove vivos: Luis Enrique, Margot, Aida, Ligia, Gustavo, Rita, Hernando, Alfredo e Eligio Gabriel[nota *]).

Mesmo antes da conquista do prêmio Nobel (1982), a identificação dos costenhos com Gabo era total. Depois do prêmio, García Márquez se tornou patrimônio de todos os colombianos. Todos se sentem um pouco donos do prêmio, como das vitórias da seleção de futebol, dos ciclistas que vencem provas de montanha no Tour de France ou do ídolo do automobilismo Juan Pablo Montoya.

  Por sua fama e por seu estilo nada acadêmico, Gabo deixou de ser patrimônio apenas de intelectuais. Virou ícone, e não por acaso há grafites nas ruas com mensagens para el maestro e retratos dele em cantinas populares. Maurício Vargas, companheiro de Gabo na revista semanal Cambio, acha que ele elevou a Colômbia perante o mundo, algo muito valioso para um país conhecido mais pela guerra civil e pelo narcotráfico.

 

*

Jaime mal começara a dar os primeiros passos quando os pais mandaram o primogênito Gabo para a altiplanície de Bogotá, a 2,6 mil metros de altitude e mil quilômetros distante do mar. Em


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comparação com os costenhos, os bogotanos são sisudos, desconfiados, conservadores. Andam apressados e se acham superiores.

O clima de Bogotá é predominantemente frio. Em Cartagena, ao contrário, o tempo é moroso, utilizado sem ansiedades ou culpas. Pode-se gozá-lo tão paganamente quanto possível. A cidade é um sacrilégio à teologia da produção, mas fornece um calor — humano e climático — insuspeito.

Em Bogotá, Gabo se sentiu sozinho e fora de lugar. Mas dois fatores contribuíram para o florescimento de seus talentos. O primeiro foi o internato, que o forçou a enfrentar a solidão com longas leituras. Em segundo lugar, o Bogotaço, que o levou a retornar a Cartagena na primavera de 1948.

 

*

Bogotá, abril de 1948. Assassinaram na rua o então candidato favorito a presidente Jorge Eliécer Gaitán, do Partido Liberal. O episódio gerou uma onda de violência e revolta conhecida como Bogotaço, que contaminou o país. Cerca de 300 mil pessoas — camponeses em sua maior parte — seriam mortas ao longo das duas décadas seguintes. Resultado: a partir dos anos de 1980 havia tantas fontes de violência na Colômbia que as vítimas se confundiam sobre a origem e a identidade dos agressores.

Durante os enfrentamentos que se sucederam ao assassinato de Gaitán, não pouparam a pensão onde o jovem Gabriel García Márquez morava. O edifício inteiro foi incendiado. O então aspirante a escritor e jornalista, tendo na época apenas alguns contos publicados no El Espectador, guardou numa maleta o que restou de sua passagem pela capital: livros de seus autores mais admirados (Kafka e Faulkner, principalmente) e originais seus.

Gabo soube retratar e engajar em sua obra estas e outras circunstâncias. Ao mesmo tempo, e conscientemente, interpretava a história e difundia na Colômbia um alerta contra a polarização radical. Sua transferência da invadida Universidade Nacional para a Universidade de Cartagena, onde continuou por algum tempo o curso de direito (não concluído), foi decisiva.

 


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Cartagena, cueva do Mercado Público, calle San Juan de Dios. Lá imperavam os relatos orais e a abertura de espírito próprios da tradição costenha. García Márquez se encantava com a extravagância divertida e a sabedoria tácita dos ambientes populares que lhe seriam preciosos no campo da arte.

As reuniões na cueva eram comandadas por mestre Clemente Manuel Zabala, chefe de redação do El Universal, de Cartagena. Gabo e Zabala bebiam e comiam em extensas mesas ao ar livre, acompanhados de pescadores, prostitutas, vagabundos e intelectuais. Zabala havia lido os primeiros contos do pupilo e, em pouco tempo, este conquistaria um espaço próprio no jornal – a coluna diária “Punto y aparte”.

Em Como aprendió a escribir García Márquez (1994), o pesquisador cartagenero Jorge García Usta conta que em Cartagena não havia submissão a nenhum tipo de influência cultural.

— O jovem García Márquez encontrou em Cartagena um grupo possuidor de uma diversidade cultural e uma capacidade de criação assombrosas, que sabia conjugar a ânsia de ruptura com um rigor maduro e esclarecedor — diz Usta.

 

*

Paris, 1966. Gabo era então um desempregado correspondente do El Espectador. Apesar do aperto financeiro, não tirava os olhos dos seus sonhos. Posta uma carta endereçada ao irmão Jaime. Pede averiguações em Ciénaga, uma das cidades do Caribe colombiano. Quer confirmar informações necessárias para Cem anos de solidão, a Bíblia de alguns de seus irmãos e de muitos dos que manuseiam as mais de 30 milhões de cópias espalhadas pelo mundo, traduzidas para 36 idiomas.

Uma das inquietudes era sobre a matança em praça pública dos trabalhadores das plantações de banana da United Fruit Company, em 1928, em Aracataca, exatamente no ano e na cidade em que el maestro nasceu. O episódio, de suma importância para a compreensão da persistente violência na Colômbia, é um de seus fantasmas de infância.


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Até os mais rigorosos historiadores caribenhos reconhecem que García Márquez forneceu uma versão convincente da greve e de como ela foi reprimida. A economia de Aracataca, como a de toda a região costenha, foi dominada pela United Fruit Company no começo do século XX.

O governo da época suprimiu todas as informações sobre a matança descomunal. Praticamente nada havia sido escrito sobre ela, até que García Márquez a reconstituiu no episódio culminante de Cem anos de solidão, em que trabalhadores são metralhados.

Na carta, Gabito pedia a Jaime, entre outras coisas, uma confirmação sobre o que disse o capitão que se dirigira à multidão naquele dia. Era uma dúvida, na verdade. O capitão havia dito “têm cinco minutos” ou “têm um minuto” para se retirar? Ditas a uma multidão, ambas as falas em si denotam uma crueldade implacável, e não fazem grande diferença em se tratando de uma obra de ficção. Mas Gabo queria o registro correto.

 

Lido o decreto, no meio de uma ensurdecedora vaia de protesto, um capitão substituiu o tenente no teto da estação e, com um megafone de vitrola, fez sinal de que queria falar. A multidão voltou a fazer silêncio. — Senhoras e senhores — disse o capitão com uma voz baixa, lenta, um pouco cansada — têm cinco minutos para se retirar.

A vaia e os gritos repetidos afogaram o toque de clarim que anunciou o princípio do prazo. Ninguém se mexeu.

— Já passaram os cinco minutos - disse o capitão no mesmo tom. — Mais um minuto e atiramos, (p. 290)

 

Quando Jaime abriu o seu exemplar de Cem anos e leu a passagem acima, emocionou-se.

Aquela era a minha contribuição para o livro — lembra Jaime. — “A frase mais famosa da América Latina” - brincou comigo o Gabito.

 

*

Gabriel García Márquez atingiu uma grandeza incômoda para muita gente na Colômbia. Além do prêmio Nobel em 1982,


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honra compartilhada e fator de auto-estima nacional, ele revigorou o jornalismo em seu país. Em dezembro de 1998, virou acionista majoritário da revista semanal Cambio, premiada pela cobertura intensiva e interpretativa que vem fazendo da guerra civil que já dura quase cinqüenta anos.

Retiraram de Gabo um tumor cancerígeno do pulmão e em junho de 1999 diagnosticaram um câncer linfático, ocultado da imprensa durante meses. Antes do diagnóstico, García Márquez estava debilitado e entrou em depressão. Enfrentou a quimioterapia, perdeu o vigor da aparência. Recuperou-o. Mudou-se para Los Angeles, seu recém-descoberto refúgio, para garantir o anonimato e poder continuar escrevendo Vivir para contarla, suas memórias. [O primeiro volume foi lançado em outubro de 2002 nos países hispânicos.]

Depois de vários meses de ausência em razão dos tratamentos médicos e da quimioterapia, Gabo voltou a escrever em Cambio a coluna “Gabo responde”, cujo tema pode ser uma demanda específica de algum leitor. São milhares de cartas, segundo Maurício Vargas.

No artigo “O amante inconcluso”, por exemplo, relato jornalístico sobre seu encontro com Bill Clinton, Gabo aproveita para desempenhar outro papel, o de embaixador literário da América Latina na Casa Branca:

 

Faulkner nos levou a perguntar outra vez sobre as afinidades entre os escritores do Caribe e a plêiade de grandes romancistas do sul dos EUA. Pareceram-nos mais que lógicas, se levarmos em conta que, na verdade, o Caribe não é uma área geográfica circunscrita ao mar, mas um espaço histórico e cultural muito mais vasto, que abarca desde o norte do Brasil até a concha do Mississippi. Mark Twain, William Faulkner, John Steinbeck e tantos outros seriam, então, caribenhos por direito próprio, como Jorge Amado e Derek Walcott.

 

Ele foi várias vezes convidado por Bill Clinton para ir à Casa Branca. Amigos, familiares e documentos confirmam que a presença do Nobel nos corredores dos Clinton nunca teve como obje-


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tivo apenas irmanar as literaturas das três Américas mas também incentivar acordos negociados entre guerrilha e governo colombiano.

Em igual medida, o escritor sempre trabalhou no sentido de conseguir alguma melhoria nas relações dos Estados Unidos com Cuba. Garcia Márquez continua amigo íntimo de Fidel Castro, e as acusações feitas a Fidel têm recaído também sobre as costas do escritor, hoje pejorativamente considerado um social-democrata ao estilo europeu. Com um comunista dentro do coração, rebatem seus fiéis escudeiros.

Sobre as costas de Gabo recaem também a imagem deteriorada da Colômbia no exterior e o que essa imagem representa para os mais jovens. Tudo isso pesa uma tonelada. Em Por un país al alcance de los niños, o escritor propõe que se canalize para a vida a imensa energia criadora que durante séculos os colombianos consumiram em depredação e violência, e que se abra ao final uma segunda oportunidade sobre a terra, a oportunidade que não teve a desgraçada estirpe do coronel Aureliano Buendía em Cem anos de solidão.

Na verdade, Gabo é um gerador de constâncias, característica que o diferencia do costenho típico. Nos bastidores, é freqüentemente chamado a intervir nas negociações de paz entre governo e guerrilhas. Costuma se autodenominar o último otimista do país.

Utilizou também seu prestígio internacional para criar, em 1995, a Fundación para un Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), um centro de formação complementar para pequenas turmas de jornalistas (recém-formados ou não). A fundação, mantida pela Unesco, pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e por empresas privadas, não por acaso fica em Cartagena, na mesma rua San Juan de Dios, a da cueva del mercado.

Jaime García Márquez, que foi chamado a compor a equipe de direção da FNPI, conta que o Proyecto Aracataca de desenvolvimento de vocações precoces em crianças de quatro a dez anos foi uma idéia de Gabito.


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— Crianças são uma obsessão para ele.

Esta obsessão se insinua de várias formas, como neste trecho de texto escrito para a Unesco:

 

Creio que se nasce escritor, pintor ou músico. Se nasce com a vocação e em muitos casos com as condições físicas para dança ou teatro, e com um talento propício para o jornalismo impresso, entendido como um gênero literário, e para o cinema, entendido como síntese da ficção e da plástica. Neste sentido, sou platônico: aprender é lembrar. Significa que quando uma criança chega à escola pode ir já predisposta pela natureza desses ofícios, ainda que não o saiba. E talvez não o saiba nunca, mas seu destino pode ser melhor se alguém ajudá-la a descobrir.

 

*

Cartagena se converteu em lar de diversas gerações da saga dos García Márquez, incluindo a quase centenária “Mamãe Grande” Luisa Santiaga Márquez Iguarán. Os familiares são os mais passionais admiradores de Gabito. A família está dividida em três grupos: os gabólogos, conhecedores e experts na obra do ilustríssimo, caso de Eligio Gabriel; os gabistas, seguidores incondicionais, como os irmãos Luis Enrique e Gustavo. E os gabiteros, torcedores furibundos de Gabito. Jaime pertence ao terceiro grupo:

— O que mais gosto na pessoa dele é a intranscendência. Ele não se julga superior a ninguém.

O caçula Eligio Gabriel, último de la estirpe de los Buendía, como ele mesmo diz, é um escritor assombrado pelo irmão mais velho. Por coincidência – ou talvez um sinal de que a literatura de Gabo não tem nada de fantástica Eligio também lutou contra um câncer.

— Não tenho nada a ver com o realismo mágico de Gabito — diz Eligio, com alegria e amargura, ao mesmo tempo.

Apesar das crises existenciais de qualquer caçula — de quem não se espera o máximo, menos ainda quando se tem o mais


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velho como ídolo insuperável —, Eligio realizou um sonho antigo: concluir seu livro sobre o impacto cultural de Cem anos de solidão (1967) na Colômbia e na América Latina.

— O que encanta o mais velho, encanta o mais novo. É a síndrome do irmão menor — ironiza Eligio.

 

*

A primeira extensa biografia de Gabo — a segunda deverá ser do inglês Gerald Martin — explora pouco esse caráter lendário do escritor. Em Viagem à semente, o colombiano radicado em Madri Dasso Saldívar se deixa obcecar pela gênese criativa de seu biografado. Dasso se ocupa de saciar seu desejo de narrar os contextos que culminaram com o lançamento de Cem anos de solidão. Retrata, então, um indivíduo valente, perseverante, resoluto e incansável, o oposto dos costenhos que neste momento me olham passear pelas ruelas de Cartagena.

Manuel Zapata Olivella, um dos pioneiros no estudo da cultura negra do Caribe, acha que os costenhos são constantes em ser e inconstantes em fazer; mais amantes da terra natal que da pátria; soldados aguerridos na guerra e maus combatentes na paz. Os colombianos do altiplano os consideram preguiçosos, desleixados, soltos demais na vida. Por natureza, os costenhos se entregam a suas paixões. Gabriel García Márquez também se entrega às paixões, mas com a preocupação de fazê-las perdurar.

Em 1985, o escritor encabeçou a criação da Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano, que gerou a Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, 35 quilômetros a oeste de Havana, em Cuba. Na escola já se graduaram centenas de estudantes do chamado Terceiro Mundo. A fundação luta a duras penas para formar e aperfeiçoar profissionais, a fim de garantir, pelo financiamento e pela distribuição, a continuidade do cinema em países mais pobres.

 

*

Os teimosos Florentino Ariza e Fermina Daza de O amor nos tempos do cólera cultivaram a paixão durante mais de cinqüenta


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anos. García Márquez, por sua vez, cantou vallenatos em Paris para ganhar uns trocados enquanto trabalhava Ninguém escreve ao coronel. Por sorte, naqueles tempos duros contava com a saborosa ilusão de ter a descendente de egípcios Mercedes Barcha, seu amor “para todo o sempre”, esperando-o na Colômbia.

— Na Europa, Gabito conheceu italianas, espanholas, francesas, alemãs, mas nunca deixou de pensar em Mercedes; cartas iam e vinham, e o pouquinho que lhe sobrava era para os selos — conta Margot, que tem uma promessa feita ao Cristo de la Villa para a plena recuperação de Gabo.

— Mercedes é organizada, capaz de resolver todo tipo de problemas domésticos, a começar por uma eventual falta de comida — confirma Jaime.

 

*

Na Colômbia, o catolicismo convive com o desequilíbrio; a democracia, com a guerra civil; a guerra civil, com o narcotráfico; o narcotráfico, com a injustiça social; e esta com a corrupção e a impunidade; as crianças, com a omissão; os García Márquez, com seus fantasmas ancestrais.

Gabo recortou um fragmento de tempo e o dotou de significação e permanência. Traduziu o absurdo que atormenta qualquer sonhador mais ou menos lúcido. Nisso, ele tem sido um caribenho autêntico. Mas é um idealista cujos sonhos são sua única realidade. Se sua obra é datada, como argumentam alguns críticos, isso é outra história.

Como diz Margot, a mais velha das irmãs Garcia Márquez, mediadora da família e preferida de Gabo:

— O destino é pertinaz, ninguém o distorce: o que há de ser, é.

 

P.S.: Esta matéria foi feita na mesma época em que escrevi uma reportagem interpretativa sobre a guerra civil colombiana. Quando decidi embarcar para Cartagena, meu intuito era fazer o que eu chamava, mentalmente, de “um perfil cruzado”. Ou seja, revelar um “instantâneo" de Gabo pelo com


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tato com sua geografia, sua gente, seus familiares, seus amigos, seus textos.

E Cartagena, a pérola do Caribe, foi escolhida como epicentro. Com base nela comecei a levantar alguns porquês da enorme popularidade de García Márquez na Colômbia, um país tão multicultural quanto desmoralizado mundialmente por causa da guerra civil, do narcotráfico e da corrupção política.

Faz muito tempo que Gabo não dá entrevistas. Os contatos feitos com familiares e amigos são desviados para sua agente literária, a espanhola Carmen Balcells, que raramente responde às solicitações de jornalistas. Quando o faz, é para desencorajar com firmeza, dizendo que Gabo só receberá a imprensa se o veículo se dispuser a doar US$ 50 mil para alguma entidade filantrópica confiável. Significa “não”, palavra que o próprio biógrafo de Gabo, Dasso Saldívar, me disse que ouviu inúmeras vezes, seguida de “escreva sobre mim como se eu já estivesse morto”.

El maestro está bem vivo, e suas memória, compiladas em Vivir para cantaria, são encantadoras.


P. Segunda orelha

[Descrição da imagem] Fotografia em preto e branco, em primeiro plano. De um homem de cabelo curto, espressão atenta, vestindo uma camisa polo. Ao fundo há uma estante com livros. No canto esquerdo da foto está escrito: Foto: Patrícia Braga. [Final da descrição]

 

SERGIO VILAS BOAS

 

Nasceu em Lavras, Minas Gerais,  em 1965. Viveu cerca de trinta anos em Belo Horizonte e, entre 1993 e 1994, morou treze meses em Nova York. É jornalista formado pela UNI-BH, pesquisador e professor universitário. Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, onde também prepara atualmente sua tese de doutorado. Seu principal campo de interesse, pesquisa e trabalho é o jornalismo não-periódico. É autor de artigos, perfis, reportagens especiais, entrevistas, ensaios, contos e resenhas de livros nas mais diversas áreas, que incluem política, educação, administração, tecnologia, negócios e cultura. Trabalhou no Diário do Comércio, de Belo Horizonte, época em que foi agraciado com dois prêmios: Prêmio Fiat Allis de Jornalismo Econômico 1996, pela série de reportagens sobre conflitos de gerações em empresas familiares de Minas Gerais; e Profissional de Mídia do Ano em Comunicação Empresarial 1997, da Associação Brasileira de Jornalismo Empresarial (Aberj), pelo conjunto do trabalho desenvolvido. Em São Paulo, onde reside atualmente, trabalhou na Gazeta Mercantil. É professor de Jornalismo Literário e editor executivo do site www.textovivo.com.br.

Além de contos publicados na revista Cult, é autor do livro O Estilo Magazine — o texto em revista, ensaio publicado em 1996 pela Summuns Editorial; e de Os estrangeiros do trem N ( Rocco, 1997) obra de não-ficção que valeu o Prêmio Jabuti 1998 na categoria Reportagem.


P. contracapa

 

[Descrição da imagem] Ilustração de parte de um rosto humano. [Final da descrição]Assim como os retratos fotográficos expressam uma fisionomia, ainda que tosca, o perfil jornalístico expressa uma trajetória humana, por mais histórica e geográfica, cuja estrutura e significância cabe ao repórter explicitar.

 

Os doze perfis que compõem esta coletânea demonstram como é possível expor aspectos subjetivos e objetivos dos personagens, revelando o que são ou o que deixaram de ser, suas crises, tragédias, opções, realizações.

 

Em estilo fluente, Sérgio Vilas Boas introduz esse nobre gênero jornalístico com um provocante ensaio, em que reflete sobre o trabalho de perfilar. Comenta, questiona, alerta e sugere, mostrando que o perfil transporta elementos construtivos sutis, situados além dos fatos, das técnicas e das declarações, em um universo em que percepção e sensibilidade são decisivas.

 

 

 

[Descrição da imagem] Código de barras. [Final da descrição] [Descrição da imagem] retângulo na horizontal que contém um desenho e a legenda: novas buscas em comunicação. [Final da descrição]

 


Página notas de rodapé:

 

Nota *, página 10: Não confundir Jornalismo Literário (JL) com “jornalismo sobre livros e autores”. O JL é uma filosofia e uma técnica. Filosofia do aprofundamento e técnica (narrativa) literária. Aplica-se a qualquer área de cobertura jornalística.

RETORNO NOTA *, PÁGINA 10

 

Nota 1, página 17: MARTINEZ, Monica. Jornada do herói — a estrutura narrativa mítica na construção de histórias de vida em jornalismo. Tese de doutorado. São Paulo: ECA/USP, 2002.

RETORNO NOTA 1, PÁGINA 17

 

Nota 2, página 18: [1] Entrevista realizada em 1º.9.2002.

RETORNO NOTA 2, PÁGINA 18

 

Nota 3, página 19: GOMBRICH, Ernst Hans. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1995, pp. 303-4.

RETORNO NOTA 3, PÁGINA 19

 

Nota 4, página 24: Ambos fazem parte da coletânea Vinte perfis e uma entrevista (editora Siciliano), de L. F. Mercadante.

Retorno nota 4, página 24.

 

Nota 5, página 26: Texto incluído na coletânea Fame and obscurity, de Gay Talese. Nova York: Ivy Books, 1993.

Retorno nota 5, página 26.

 

Nota 6, página 28: Trecho traduzido por George Schlesinger.

Retorno nota 6, página 28

 

Nota *, página 153: O caçula Eligio Gabriel García Márquez morreu de câncer aos 54 anos em junho de 2001, exatamente um ano depois de minha visita a Cartagena das Índias. Físico e jornalista, Eligio é autor de Tras las claves de Melquiades — historia de Cien Años de Soledad (Bogotá: Editorial Norma, 2001), reportagem-ensaio sobre a gênese e o tempo em Cem Anos de Solidão.

RETORNO NOTA *, PÁGINA 153