Título: Falando
da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras
de representar o social.
Autor: Howard
Saul Becker.
Este
material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998,
não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.
Adaptado
por: Alana Valesca.
Imagens
descritas por: Ana Paula
Adaptado
em: Abril de 2022.
Padrão
vigente a partir de março de 2022.
Observações
gerais: O material disponibilizado para adaptação não possui paginação, desse
modo, as páginas foram enumeradas por ordem.
Referência:
BECKER, Howard Saul. Falando da sociedade. In: BECKER, Howard Saul. Ensaios
sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Zahar,
2009. cap. 1. p. 1-8.
P. capa
P. 1
1. Falando da sociedade
Moro há muitos anos em São Francisco, na parte mais
baixa da encosta do Russian Hill ou no trecho mais
alto de North Beach; o modo como descrevo isso depende de quem estou tentando
impressionar. Moro perto do Fisherman’s Wharf, na rota que muita gente toma para voltar dessa
atração turística a seu hotel no centro ou à fileira de motéis da Lombard Street. Olhando por uma de minhas janelas,
frequentemente vejo grupos de turistas parados, olhando alternadamente para
seus mapas e para os altos morros que se interpõem entre eles e seus destinos.
O que aconteceu é claro. A linha reta no mapa parecia uma agradável caminhada
por um bairro residencial, que poderia lhes mostrar como vivem os nativos.
Agora estão pensando, como me disse o jovem britânico a quem ofereci ajuda:
“Preciso chegar ao meu hotel e não vou subir aquele maldito morro!”
Por que os mapas que essas pessoas consultam não as
alertam para os morros? Os cartógrafos sabem como indicar morros, de modo que
não é uma restrição do meio que causa transtornos aos pedestres. Mas os mapas
são feitos para motoristas, originalmente (embora não mais) pagos por empresas
de combustível e fabricantes de pneus, e distribuídos em postos de gasolina[nota
1] — e os motoristas preocupam-se menos que os pedestres com morros.
Esses mapas, e as redes de pessoas e organizações
que os elaboram e utilizam, exemplificam um problema mais geral. Um mapa comum
das ruas de São Francisco é uma representação convencional daquela sociedade
urbana: uma descrição visual de suas ruas e pontos de referência e de sua
distribuição no espaço. Cientistas sociais e cidadãos comuns usam
rotineiramente não somente mapas, mas também uma grande variedade de outras
representações da realidade social — alguns exemplos aleatórios são filmes
documentários, tabelas estatísticas e as histórias que as pessoas contam umas
para as outras, de modo a explicar quem são e o que estão fazendo. Todos eles,
como os mapas, dão uma descrição apenas parcial, mas apesar disso adequada para
algum objetivo. Todos emergem em contextos organizacionais, que limitam o que
pode ser feito e definem os objetivos a que a obra deverá atender. Esta
compreensão sugere vários problemas interessantes: Como as necessidades e
práticas de organizações moldam nossas descrições e análises (vamos chamá-las
de representações) da realidade social? Como as pessoas que usam essas
representações chegam a defini-las como adequadas? Essas questões têm uma relação
com questões tradicionais sobre saber e contar em ciência, mas vão além delas
para incluir problemas mais tradicionalmente associados com as artes e com a
experiência e a análise da vida cotidiana.
Durante muitos anos, estive envolvido com uma
variedade de maneiras de falar sobre a sociedade, profissionalmente e por pura
curiosidade natural. Sou um sociólogo, por isso as maneiras de falar que vêm de
imediato à minha mente são as que os sociólogos usam rotineiramente: descrição
etnográfica, discurso teórico, tabelas estatísticas (e representações visuais
de números como diagramas de barras), narrativa histórica, e assim por diante.
Muitos anos atrás, porém, entrei para uma escola de arte e tornei-me fotógrafo,
e nesse processo desenvolvi um forte e duradouro interesse por representações
fotográficas da sociedade, que fotógrafos documentais e outros vêm fazendo
desde a invenção do meio. Isso me levou muito naturalmente a pensar sobre o
cinema como uma outra maneira de falar sobre a sociedade. E não
P. 2
apenas filmes documentários, mas filmes de
ficção também. Eu havia sido um ávido leitor de ficção desde menino, e, como a
maior parte dos outros leitores de histórias, sabia que elas não são feitas
apenas de fantasias, que frequentemente contêm observações que merecem ser
lidas sobre como a sociedade é construída e funciona. Por que não
representações dramáticas de histórias no palco também? Tendo sempre me
interessado e envolvido em todas essas maneiras de falar sobre a sociedade,
decidi tirar proveito da coleção um tanto casual e aleatória de exemplos que
elas haviam depositado em meu cérebro.
Para fazer o quê? Para ver os problemas
que qualquer pessoa que tenta fazer o trabalho de representar a sociedade deve
solucionar, que tipos de solução foram encontrados e tentados, e com que
resultado. Para ver o que os problemas de diferentes meios têm em comum e que
aspecto têm soluções que funcionam para um tipo de relato quando aplicadas a
algum outro tipo. Para ver o que, por exemplo, tabelas estatísticas têm em
comum com projetos fotográficos documentais, o que modelos matemáticos têm em
comum com ficção de vanguarda. Para ver que soluções para os problemas de
descrição um campo pode importar de outro.
Assim, estou interessado em romances,
estatísticas, histórias, etnografias, fotografias, filmes e qualquer outra
forma pela qual pessoas tenham tentado contar a outras o que sabem sobre sua
sociedade ou alguma outra sociedade que as interesse. Chamarei os produtos de
toda essa atividade em todos esses meios de “relatos sobre a sociedade”, ou,
por vezes, “representações da sociedade”. Que problemas e questões surgem
quando se fazem esses relatos, em qualquer meio? Montei uma lista dessas
questões a partir das coisas que as pessoas que fazem esse tipo de trabalho falam
e das queixas que fazem umas para as outras, usando como princípio básico de
descoberta esta ideia: se algo é um problema numa maneira de fazer
representações, é um problema em todas as outras maneiras. Mas as pessoas que
trabalham numa área podem ter resolvido o problema de modo inteiramente
satisfatório para elas, e assim sequer pensam nele como um problema, enquanto
para outras pessoas ele parece um dilema insolúvel. Isso significa que estes
últimos podem aprender alguma coisa com os primeiros.
Fui abrangente ao fazer essas
comparações, incluindo (pelo menos em princípio) todos os meios e gêneros que
as pessoas usam ou já usaram. Claro que não falei sobre tudo. Mas tentei evitar
as tendenciosidades convencionais mais óbvias e considerei, além de formatos
científicos respeitados e aqueles inventados e usados por profissionais em
disciplinas científicas reconhecidas, aqueles usados por artistas e leigos
também. Uma lista sugere essa variedade de tópicos: das ciências sociais, modos
de representação como modelos matemáticos, tabelas estatísticas e gráficos,
mapas, prosa etnográfica e narrativa histórica; das artes, romances, filmes,
fotografias imóveis e teatro; da grande e vaga área entre uma coisa e outra,
histórias de vida e outros materiais biográficos e autobiográficos, reportagens
(inclusive os gêneros mistos do docudrama, filme
documentário e fato “ficcionalizado”) e a narrativa
de histórias, a elaboração de mapas e outras atividades representacionais de
leigos (ou de pessoas atuando na condição de leigas, como até profissionais
fazem na maior parte do tempo).
Somos todos curiosos em relação à
sociedade em que vivemos. Precisamos saber, na base mais rotineira e da maneira
mais comum, como nossa sociedade funciona. Que regras governam as organizações
de que participamos? Em que padrões rotineiros de comportamento outras pessoas
se envolvem? Sabendo essas coisas, podemos organizar nosso próprio
comportamento, aprender o
P. 3
que queremos, como obtê-lo, quanto custará, que oportunidades de ação
várias situações nos oferecem.
Onde aprendemos essas coisas? Da
maneira mais imediata, a partir das experiências de nossa vida diária.
Interagimos com todas as espécies de pessoas, grupos e organizações.
Conversamos com pessoas de todos os tipos em todos os tipos de situação.
Evidentemente, não de todos os tipos: a experiência social de tipo face a face
é limitada pelas relações sociais, a situação na sociedade, os recursos
econômicos, a localização geográfica. Podemos nos virar com esse conhecimento limitado,
mas, em sociedades modernas (provavelmente em todas as sociedades), precisamos
conhecer mais do que aprendemos com a experiência pessoal. Precisamos — ou pelo
menos queremos — saber sobre outras pessoas e lugares, outras situações, outras
épocas, outros estilos de vida, outras possibilidades, outras oportunidades.
Assim, procuramos “representações da
sociedade” em que outras pessoas nos falam sobre todas essas situações, lugares
e épocas que não conhecemos em primeira mão, mas sobre os quais gostaríamos de
saber. Com a informação adicional, podemos fazer planos mais complexos e reagir
de uma maneira mais complexa às nossas situações de vida imediatas.
Para simplificar, uma “representação”
da sociedade é algo que alguém nos conta sobre algum aspecto da vida social.
Essa definição abarca um grande território. Num extremo situam-se as
representações comuns que fazemos uns para os outros como leigos, no curso da
vida diária. Tome por exemplo a elaboração de mapas. Em muitas situações e para
muitos objetivos, essa é uma atividade altamente profissionalizada, baseada em
séculos de experiência prática combinada, raciocínio matemático e erudição
científica. Em muitas outras situações, porém, é uma atividade comum que todos
exercemos de vez em quando. Convido-o a me fazer uma visita em certa ocasião,
mas você não sabe ir de carro até onde moro. Posso lhe dar orientações verbais:
“Vindo de Berkeley, você toma a primeira saída à direita logo depois da Bay Bridge, vira à esquerda no
começo da ladeira, segue por vários quarteirões e vira
à esquerda na Sacramento, continua seguindo até chegar a Kearny,
vira à direita e sobe até Columbus...” Posso lhe
sugerir que consulte um mapa comum de ruas, além de minhas orientações, ou
posso simplesmente lhe dizer que moro na esquina de Lombard
com Jones e deixar que você use o mapa para localizar esse ponto. Ou posso
desenhar meu próprio mapinha personalizado para você.
Posso mostrar de onde você deve partir — “sua casa” — e desenhar as ruas
relevantes, indicando-lhe onde virar, que extensão terá cada trecho, por que
pontos de referência você passará e como saberá que chegou à “minha casa”.
Hoje, um site na internet nos diz tudo isso, ou podemos deixar que nosso GPS
faça o serviço para nós.
Estas são todas representações de uma
porção da sociedade, contidas numa simples ligação geográfica; uma maneira mais
simples e melhor de dizer isso é que estas são todas maneiras de falar sobre a
sociedade ou sobre alguma parte dela. Algumas das maneiras — o mapa rodoviário
comum ou alguma descrição gerada por computador — são elaboradas por
profissionais altamente preparados, lançando mão de grande quantidade de
equipamentos e conhecimento especializado. A descrição verbal e o mapa caseiro
são feitos por pessoas iguais àquelas a quem são dados, pessoas que não têm
mais conhecimento ou habilidade geográfica que qualquer adulto razoavelmente
competente. Todas elas são capazes, cada uma a seu modo, de fazer o serviço de
levar alguém de um lugar a outro.
Meus próprios colegas de profissão —
sociólogos e outros cientistas sociais — gostam de falar como se tivessem o
monopólio da criação dessas representações, como se o conhecimento da sociedade
que produzem fosse o único conhecimento “real” sobre esse assunto. Isso não é
verdade. E eles gostam de fazer a afirmação igualmente tola de que as maneiras
que possuem de
P. 4
falar sobre a sociedade são as melhores ou as únicas pelas quais isso pode
ser feito de forma apropriada, ou que suas maneiras de fazer esse trabalho
protegem contra todas as espécies de erros terríveis que poderiamos
cometer.
Esse tipo de conversa é apenas uma
tomada do poder profissional clássica. Levar em conta as maneiras como as
pessoas que trabalham em outros campos — artistas visuais, romancistas,
dramaturgos, fotógrafos e cineastas — e os leigos representam a sociedade
revelará dimensões analíticas e possibilidades que a ciência social muitas
vezes ignorou serem úteis em outros aspectos. Vou me concentrar no trabalho
representacional feito por outros tipos de trabalhadores, bem como naquele
feito por cientistas sociais. Estes sabem como fazer seu trabalho, e ele é
adequado para muitos objetivos. Mas suas maneiras não são as únicas.
Quais são algumas das outras maneiras?
Podemos categorizar as atividades representacionais de diversas formas. Poderíamos
falar de meios — cinema versus palavras versus números, por exemplo. Poderíamos
falar sobre a intenção dos produtores das representações: ciência versus arte
versus reportagem. Um levantamento abrangente desse tipo serviria bem a muitos
objetivos, mas não ao meu objetivo de explorar problemas genéricos de
representação e a variedade de soluções que o mundo produziu até agora.
Examinar algumas das maneiras principais, altamente organizadas, de falar sobre
sociedade significa estar atento às distinções entre ciência, arte e
reportagem. Mais do que maneiras diferentes de fazer alguma coisa, estas são
formas de organizar o que poderia ser, do ponto de vista de materiais e
métodos, mais ou menos as mesmas atividades. (Mais adiante, no Capítulo 11,
irei comparar três modos de usar fotografias para esses três tipos de trabalho,
vendo como as mesmas fotografias poderiam ser arte, jornalismo ou ciência
social.)
Falar sobre a sociedade em geral
envolve uma comunidade interpretativa, uma organização de pessoas que faz
rotineiramente representações padronizadas de um tipo particular (“produtores”)
para outros (“usuários”) que as utilizam rotineiramente para objetivos
padronizados. Os produtores e os usuários adaptaram o que fazem ao que outros
fazem, de modo que a organização de fazer e usar é, pelo menos por algum tempo,
uma unidade estável, um mundo (empregado num sentido técnico que desenvolvi em
outro momento[nota 2] e discutirei mais completamente abaixo).
Com bastante frequência, algumas
pessoas não se encaixam bem nesses mundos organizados de produtores e usuários.
Esses experimentadores e inovadores não fazem as coisas como são usualmente
feitas, e por isso suas obras podem não ter muitos usuários. Mas as soluções
que dão para problemas comuns nos dizem muito e abrem nossos olhos para
possibilidades que uma prática mais convencional não vê. As comunidades
interpretativas muitas vezes tomam emprestados procedimentos e formas,
usando-os para fazer algo em que seus criadores naquela outra comunidade nunca
tinham pensado, ou que jamais tinham pretendido, produzindo misturas de método
e estilo para se encaixar nas condições cambiantes das organizações mais amplas
a que pertencem.
Isso é tudo muito abstrato. Aqui está
uma lista mais específica de formatos comuns para falar sobre a sociedade,
produtoras de obras de representação social que merecem ser cuidadosamente
examinadas:
Ficção. Obras de ficção — romances e
contos — serviram muitas vezes como veículos de análise social. As sagas de
famílias, classes e grupos profissionais produzidas por escritores tão
diferentes em propósito e talento como Honoré de Balzac, Emile Zola, Thomas
Mann, C.P. Snow e Anthony Powell sempre foram
compreendidas como corporificando descrições complexas de uma vida social e
seus processos constituintes, e delas dependendo para extrair seu poder e
virtudes estéticas. As obras de Charles Dickens, tomadas isoladamente ou em
conjunto, foram
P. 5
compreendidas (como ele pretendeu que fossem) como uma maneira de descrever para um
amplo público as organizações que produziam os males que acometiam sua
sociedade.
Arte dramática. De maneira semelhante, o teatro foi muitas vezes um
veículo para o exame da vida social, em especial a descrição e análise de males
sociais. George Bernard Shaw empregou a forma dramática para corporificar sua
compreensão de como “problemas sociais” surgiam e quão profundamente penetravam
o corpo político. Sua peça A profissão da sra. Warren explica o funcionamento
do negócio da prostituição quando ele assegurava o sustento de pelo menos parte
da classe alta britânica, e Major Barbara fez o mesmo para a guerra e o fabrico
de munições. Muitos teatrólogos usaram a arte dramática para objetivos
semelhantes (Henrik Ibsen, Arthur Miller, David
Mamet).
Dizer que essas obras e autores fazem “análise social” não significa que
isso é “tudo” que fazem, ou que essas obras são “apenas” sociologia sob um
disfarce artístico. Em absoluto. Seus autores têm em mente objetivos que vão
além da análise social. Contudo até o crítico mais formalista deveria perceber
que alguma parte do efeito de muitas obras de arte depende de seu conteúdo
“sociológico” e da crença dos leitores e platéias de
que o que essas obras lhes dizem sobre a sociedade é, em certo sentido,
“verdadeiro”.
Filmes. No caso mais óbvio, o documentário — Harlan
County, U.S.A. (1976), de Barbara Koppel,
e Chronique d’un été (1961), de Edgar Morin e Jean
Rouch, são exemplos bem conhecidos — teve como
objetivo primeiro a descrição da sociedade, muitas vezes,
mas não necessariamente de maneira declarada, de uma perspectiva reformista,
buscando mostrar aos espectadores o que está errado nos arranjos sociais
atuais. Filmes de ficção também pretendem muitas vezes analisar e comentar as
sociedades que apresentam, muitas vezes aquelas em que são feitos. Os exemplos
vão desde o pseudodocumentário de Gillo Pontecorvo A Batalha de Argel (1966) a produções clássicas
de Hollywood como A luz é para todos (1947), de Elia Kazan.
Fotografias. De maneira semelhante, fotografias imóveis ocuparam-se
muitas vezes de análise social desde os primórdios do gênero. Um gênero bem
definido de fotografia documental teve uma história longa e ilustre. Alguns
trabalhos exemplares desse gênero incluem The Secret
Paris of the ’30s (1976),
de Brassaí, American Photographs
([1938] 1975), de Walker Evans, e The Americans
([1959] 1969), de RobertFrank.
Até agora, falei sobre modos “artísticos” de fazer representações da
sociedade. Outras representações estão mais associadas à “ciência”.
Mapas. Os mapas, associados com a disciplina da geografia (mais
especificamente a cartografia), são uma maneira eficiente de exibir grandes
quantidades de informação sobre unidades sociais consideradas em sua dimensão
espacial.
Tabelas. A invenção da tabela estatística no século XVIII tornou
possível resumir vastos números de observações específicas num formato compacto
e comparável. Essas descrições compactas ajudam governos e outros a organizar a
ação social deliberada. O censo governamental é a forma clássica desse uso.
Cientistas empregam tabelas para exibir dados que outros podem usar para
avaliar suas teorias. Os cientistas sociais do século XX tornaram-se cada vez
mais dependentes da exibição tabular de dados quantitativos colhidos
especificamente para esse propósito.
P. 6
Modelos matemáticos. Alguns cientistas
sociais descreveram a vida social reduzindo-a a entidades abstratas exibidas
como modelos matemáticos. Esses modelos, intencionalmente distantes da
realidade social, podem transmitir relações básicas características da vida
social. Eles foram usados na análise de fenômenos sociais tão variados quanto
sistemas de parentesco e o mundo da música popular comercial.
Etnografia. Uma forma clássica de
descrição social foi a etnografia, descrição verbal detalhada do modo de vida, considerado
em sua totalidade, de alguma unidade social, de forma arquetípica, mas não
necessariamente, um pequeno grupo tribal. O método passou a ser aplicado, e
hoje é amplamente usado em organizações de todos os tipos: escolas, fábricas,
áreas urbanas, hospitais e movimentos sociais.
Em algum ponto entre os extremos da
arte e da ciência situam-se a história e a biografia, geralmente dedicadas a
descrições detalhadas e precisas de eventos passados, mas muitas vezes
igualmente propensas a avaliar amplas generalizações sobre assuntos com que as
outras ciências sociais lidam. (Lembrem-se de que todos os relatos sociais de
hoje serão matéria-prima para historiadores do futuro, assim como obras-primas
da sociologia, como os estudos de “Middletown” feitos
por Lynds, transformaram-se, de análise social, em
documento histórico.)
Finalmente, há os extravagantes,
rebeldes e inovadores de que falei antes. Alguns produtores de representações
da sociedade misturam métodos e gêneros, experimentam formas e linguagens e fornecem
análises de fenômenos sociais em lugares em que não as esperamos e sob formas
que não reconhecemos nem como arte nem como ciência, ou que vemos como uma
mistura incomum e estranha de gêneros. Assim, Hans Haacke,
que pode ser chamado de artista conceituai, serve-se de expedientes simples
para levar usuários a conclusões inesperadas. Georges Perec
e ítalo Calvino, membros do grupo literário francês Oulipo,[nota
3] dedicado a experimentos literários esotéricos, fizeram do romance,
numa forma ou outra, um veículo para pensamento sociológico sutil. E nas talk pieces
de David Antin, histórias que podem ou não ser
ficções e transmitem análises e idéias sociais
complexas. Como todos esses experimentos, a obra desses artistas nos obriga a
reconsiderar procedimentos que de hábito consideramos óbvios, e vamos discutir
seu trabalho em maiores detalhes adiante.
Fatos
Devo fazer uma distinção importante,
mesmo que ela seja falaciosa e enganadora, e cada palavra envolvida seja
escorregadia e incerta. Não me parece que esses defeitos façam muita diferença
para meu objetivo aqui. E a distinção entre “fato” e “ideia” (ou
“interpretação”). Uma parte de qualquer relato sobre a sociedade (de qualquer
dos tipos que acabo de esboçar) é uma descrição de como as coisas são: como
alguns tipos de coisas são, em algum lugar, em algum momento. Este é o número
de pessoas que há nos Estados Unidos, tal como contadas no ano 2000 pelo
Departamento de Recenseamento. Este é o número de pessoas do sexo feminino e o
número de pessoas do sexo masculino. Esta é a distribuição etária dessa
população — quantas pessoas com menos de cinco anos, quantas entre cinco e dez
anos, e assim por diante. Esta é a composição racial dessa população. Esta é a
distribuição de suas rendas. Esta é a distribuição das rendas em subgrupos
raciais e de gênero da população.
Estes são fatos sobre a população dos
Estados Unidos (e, claro, fatos semelhantes estão mais ou
P. 7
menos disponíveis para todos os outros países do mundo). Eles são descrições
do que encontraria uma pessoa que saísse à procura desses números, as
evidências que resultam das operações que demógrafos e estatísticos
empreenderam em conformidade com os procedimentos de seu ofício.
Da mesma maneira, antropólogos nos
dizem, por exemplo, como essas pessoas, vivendo nessa sociedade, avaliam o
parentesco: eles reconhecem tais e tais categorias de relação familiar e pensam
que é assim que pessoas relacionadas de tal e tal maneira devem se comportar
umas com as outras; estes são, na expressão clássica, seus direitos e
obrigações mútuos. Os antropólogos sustentam suas análises com descrições dos
fatos sobre como essas pessoas falam e se comportam, contidas nas notas de
campo que relatam suas observações e entrevistas in loco, assim como demógrafos
apoiam as descrições da população dos Estados Unidos em dados produzidos pelo
censo. Em ambos os casos, os profissionais começam com evidências colhidas de
maneiras reconhecidas por seus colegas de ofício e consideradas suficientes
para assegurar o status factual dos resultados.
Agora passemos às ressalvas. Thomas
Kuhn persuadiu-me há muito tempo de que fatos nunca são apenas fatos, mas
antes, como disse ele, estão “carregados de teoria”.[nota
4] Cada afirmação de um fato pressupõe uma teoria que explica que
entidades estão ali para serem descritas, que características elas podem ter,
quais dessas características podem ser observadas e quais podem ser apenas
inferidas a partir de características observáveis, e assim por diante.
As teorias muitas vezes parecem tão
óbvias como se fossem autoexplicativas. Alguém precisa demonstrar que podemos
discernir um ser humano quando vemos um e distinguir tal ser de algum outro
tipo de animal? É preciso demonstrar que esses seres humanos podem ser
caracterizados como homens ou mulheres? Ou como negros, brancos, asiáticos ou
de alguma outra variedade racial?
De fato, cientistas e leigos discutem sobre coisas como essas o
tempo todo, como deixam claro as categorias raciais em contínua mudança em
censos no mundo inteiro. Características como gênero e raça não aparecem na
natureza de maneira óbvia. Cada sociedade tem formas de diferençar meninos de
meninas e distinguir membros de categorias raciais que seus membros consideram
importantes. Mas essas categorias se baseiam em teorias sobre as
características essenciais dos seres humanos, e a natureza das categorias e dos
métodos de atribuir pessoas a elas varia entre sociedades. Assim, nunca podemos
tomar os fatos como óbvios. Não há fatos puros, apenas “fatos” que adquirem
significado a partir de uma teoria subjacente.
Além disso, fatos são fatos apenas
quando aceitos como tais pelas pessoas para quem são relevantes. Estaria eu me
entregando a um tipo pernicioso de relativismo, ou a um jogo de palavras
malicioso? Talvez, mas não penso que temos de discutir se há uma realidade
última que a ciência acabará por revelar para reconhecer que pessoas sensatas,
inclusive cientistas sensatos, frequentemente discordam com relação ao que
constitui um fato, e a quando um fato realmente é um fato. Essas discordâncias
surgem porque os cientistas em geral discordam com relação ao que constitui
evidência adequada da existência de um fato. Bruno Latour
demonstrou, bem o suficiente para satisfazer a mim e a muitos outros, que, como
ele expressa de forma tão elegante, o destino de um achado científico reside
nas mãos dos que passam a se interessar por ele depois.5 Se estes o
aceitam como um fato, ele será tratado como tal. Isso significa que qualquer
insignificância pode ser um fato? Não, porque um dos “atuantes”, para usar a
deselegante expressão de Latour, que deve concordar
com a interpretação é o objeto sobre o qual as declarações de fato são feitas.
Posso dizer que a Lua é feita de queijo verde, mas a Lua terá de cooperar,
exibindo características que outras pessoas reconheçam como próprias de queijo
verde — do contrário meu fato se tornará um não fato inaceitável. Pior ainda,
meu fato pode sequer ser contestado: pode ser simplesmente
P. 8
ignorado, de modo que seria lícito dizer que ele não existe de maneira alguma,
pelo menos não no discurso dos cientistas que estudam a Lua. Pode haver uma
realidade última, mas somos todos seres humanos falíveis e passíveis de erro,
de modo que todos os fatos no mundo real em que vivemos são discutíveis. Este
fato é no mínimo tão renitente e difícil de descartar com palavras quanto
qualquer outro fato científico.
Finalmente, fatos não são aceitos em geral pelo mundo todo, são aceitos
ou rejeitados pelos públicos particulares aos quais seus proponentes os
apresentam. Isso significa que a ciência é situacional, e
portanto seus achados não são universalmente verdadeiros? Não estou
assumindo uma posição nessas questões fundamentais de epistemologia, apenas
reconhecendo o que é óbvio: quando fazemos um relato sobre a sociedade, nós o
fazemos para alguém, e a identidade desse alguém afeta o modo como apresentamos
o que sabemos e o modo como os usuários reagem ao que lhes apresentamos. Os
públicos diferem— isto é importante — no que sabem e podem fazer, no que
acreditam e vão aceitar, com base na confiança ou em algum tipo de evidência.
Diferentes tipos de relatos destinam-se rotineiramente a diferentes tipos de
públicos: tabelas estatísticas a pessoas mais ou menos preparadas para lê-las,
modelos matemáticos a pessoas com formação altamente especializada nas
disciplinas relevantes, fotografias a uma ampla variedade de públicos leigos e
profissionais, e assim por diante.
Assim, em vez de fatos sustentados por evidências que os tornam
aceitáveis como fatos, temos fatos baseados numa teoria, aceitos por algumas
pessoas porque foram colhidos de uma maneira aceitável para alguma comunidade
de produtores e usuários.
Interpretações
Não é fácil distinguir interpretações de fatos. Cada fato, em seu
contexto social, implica e convida a interpretações. As pessoas passam
facilmente e sem muita reflexão de uma coisa a outra.
Os mesmos fatos darão lugar a muitas interpretações. Dizer, para tomar um
exemplo provocativo, que grupos raciais diferem em índices de QI pode
certamente ser um fato — isto é, pode ser demonstrado pelo uso de testes
comumente usados por psicólogos que fazem dessas medições ocupação sua. Mas
interpretar um achado como este como demonstração de que tais diferenças são
genéticas — herdadas, e portanto não facilmente
alteráveis — não é um fato, mas uma interpretação do significado do fato
relatado. Uma interpretação alternativa diz que o fato demonstra que o teste de
QI se aplica apenas a uma cultura e não pode ser usado para comparar populações
diferentes.
Os achados sobre raça, gênero e renda que podemos encontrar no censo dos
Estados Unidos também não falam por si mesmos. Alguém fala por eles,
interpretando seu significado. As interpretações geram mais discussão que os
fatos. Podemos concordar com relação aos números que descrevem as relações
entre gênero, raça e renda, mas os mesmos dados de um censo poderiam ser
interpretados para mostrar a existência de discriminação, a redução da
discriminação, o efeito conjunto de duas condições desvantajosas (ser mulher,
ser negro) sobre a renda, ou muitas outras histórias possíveis.
Um relato sobre a sociedade, portanto, é um dispositivo que consiste em
declarações de fato, baseadas em evidências aceitáveis para algum público, e
interpretações desses fatos, igualmente aceitáveis para algum público.