Este material foi adaptado pelo laboratório de acessibilidade da universidade federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a lei 9.610 de 19/02/1998, capítulo IV, artigo 46. Permitindo o uso apenas para fins educacionais de pessoas com deficiência visual. Não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.
Revisado por: Leila Beatriz
Natal, agosto de 2018.
COELHO, Fábio Ulhoa. Teoria geral do direito comercial. In:______. Novo manual de direito comercial: direito de empresa. 29. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. cap. 1, p. 41-60.
Página 41
PRIMEIRA PARTE
TEORIA GERAL DO DIREITO COMERCIAL
Página 42
ATIVIDADE EMPRESARIAL
Página 43
1.
OBJETO DO DIREITO COMERCIAL
Os bens e serviços de que todos precisamos para viver - isto é, os que atendem às
nossas necessidades de vestuário,
alimentação, saúde, educação, lazer etc. - são produzidos em organizações econômicas
especializadas e negociados no
mercado. Quem estrutura essas organizações são pessoas com vocação para a tarefa
de combinar determinados componentes (os “fatores de produção”) e fortemente
estimuladas pela possibilidade de ganhar dinheiro, muito dinheiro, com isso.
São os empresários.
A atividade dos
empresários pode ser vista como a de articular os fatores de produção, que no
sistema capitalista são quatro: capital, mão de obra, insumo e tecnologia. As
organizações em que se produzem os bens e serviços necessários ou úteis à vida
humana são resultado da ação dos empresários, ou seja, nascem do aporte de capital
- próprio ou alheio -, compra de ínsumos, contratação de mão de
obra e desenvolvimento ou aquisição de tecnologia que realizam.
Quando alguém com vocação para essa atividade identifica
a chance de lucrar, atendendo à demanda de quantidade considerável de pessoas -
quer dizer, uma necessidade, utilidade ou simples desejo de vários homens e
mulheres na tentativa de aproveitar tal oportunidade, ele deve estruturar uma
organização que produza a mercadoria ou serviço correspondente, ou que os traga
aos consumidores.
Estruturar a produção ou
circulação de bens ou serviços significa reunir os recursos financeiros
(capital), humanos (mão de obra), materiais (insumo) e tecnológicos que
viabilizem oferecê-los ao
mercado consumidor com preços e qualidade competitivos. Não é tarefa simples.
Pelo contrário, a pessoa que se propõe realizá-la deve ter competência para isso, adquirida mais
por experiência de vida que
propriamente por estudos. Além disso, trata-se sempre de empreitada sujeita a risco. Por mais
cautelas que adote o empresário, por
mais seguro que esteja do
potencial do negócio, os consumidores podem simplesmente não se interessar pelo
bem ou serviço oferecido.
Página 44
Diversos outros fatores inteiramente alheios à sua vontade - crises políticas ou econômicas no Brasil ou exterior, acidentes ou deslealdade de concorrentes, por exemplo - podem também obstar o desenvolvimento da atividade. Nesses casos, todas as expectativas de ganho se frustram e os recursos investidos se perdem. Não há como evitar o risco de insucesso, inerente a qualquer atividade econômica. Por isso, boa parte da competência característica dos empresários dotados de vocação diz respeito à capacidade de mensurar e atenuar riscos.
O Direito Comercial cuida do exercício dessa atividade econômica organizada de fornecimento de bens ou serviços, denominada empresa. Seu objeto é o estudo dos meios socialmente estruturados de superação dos conflitos de interesses envolvendo empresários ou relacionados as empresas que eles exploram. As leis e a forma pela qual são interpretadas pela jurisprudência e doutrina, os valores prestigiados pela sociedade, bem assim o funcionamento dos aparatos estatal e paraestatal, na superação desses conflitos de interesses, formam o objeto da disciplina.
A denominação deste ramo do direito (“comercial”) explica-se por razões históricas, examinadas na sequência; por tradição, pode-se dizer. Outras designações têm sido empregadas na identificação desta área do saber jurídico (por exemplo: direito empresarial, mercantil, dos negócios etc.), mas nenhuma ainda substituiu por completo a tradicional. Assim, embora seu objeto não se limite à disciplina jurídica do comércio, Direito Comercial tem sido o nome que identifica - nos currículos de graduação e pós-graduação em Direito, nos livros e cursos, no Brasil e em muitos outros países - o ramo jurídico voltado às questões próprias dos empresários ou das empresas; à maneira como se estrutura a produção e negociação dos bens e serviços de que todos precisamos para viver. É, também, a expressão adotada pela Constituição Federal para identificar este ramo jurídico (art. 22,I).
2.
COMÉRCIO E EMPRESA
Como
mencionado acima, os bens e serviços que homens e mulheres necessitam ou
desejam para viver (isto é, vestir, alimentar-se, dormir, divertir-se etc.) são
produzidos em organizações econômicas especializadas. Nem sempre foi assim,
porém. Na Antiguidade, roupas e víveres eram produzidos na própria casa, para
os seus moradores; apenas os excedentes eventuais eram trocados entre vizinhos
ou na praça. Na Roma antiga, a família dos romanos não era só o conjunto de
pessoas unidas por laços de sangue (pais e filhos), mas também incluía os
escravos, assim como a morada não era apenas o lugar de convívio intimo e recolhimento, mas também o de produção de
vestes, alimentos, vinho e utensílios de uso diário.
Página 45
Alguns povos da
Antiguidade, como os fenícios, destacaram-se intensificando as trocas e, com isto, estimularam
a produção de bens destinados especificamente à venda. Esta atividade de fins econômicos, o comércio, expandiu-se com extraordinário vigor.
Graças a ela, estabeleceram-se intercâmbios entre culturas distintas,
desenvolveram-se tecnologias e meios de transporte, fortaleceram-se os Estados,
povoou-se o planeta de homens e mulheres; rias, também, em função do comércio,
foram travadas guerras, escravizaram-se povos, recursos naturais se esgotaram. Com o processo econômico
de globalização desencadeado após o
fim da Segunda Guerra Mundial (na verdade, o último conflito bélico por
mercados coloniais), o comércio procura derrubar as fronteiras nacionais que
atrapalham sua expansão. Haverá dia em que o planeta será um único mercado.
O comércio gerou e
continua gerando novas atividades econômicas. Foi a intensificação das
trocas pelos comerciantes que despertou em algumas pessoas ointeresse de
produzirem bens de que não necessitavam diretamente; bens feitos para serem
vendidos e não para serem usados por quem os fazia. É o início da atividade que,
muito tempo depois, será chamada de fabril ou industrial.
Os bancos e os seguros, em sua origem, destinavam-se a atender necessidades dos
comerciantes. Deve-se ao
comércio eletrônico a
popularização da rede mundial de computadores (internet), que estimula
diversas novas atividades econômicas.
Na Idade Média, o comércio
já havia deixado de ser atividade característica só de algumas culturas ou povos. Difundiu-se
por todo o mundo civilizado. Durante
o Renascimento Comercial, na Europa, artesãos e comerciantes europeus reuniam-se
em corporações de ofício, poderosas
entidades burguesas (isto é, sediadas em burgos) que gozavam de significativa
autonomia em face do poder real e dos senhores feudais. Nas corporações de
ofício, como expressão dessa autonomia, foram paulatinamente surgindo normas destinadas
a disciplinar as relações entre os seus filiados. Na Era Moderna, estas normas
pseudossistematizadas serão chamadas de Direito Comercial. Nesta sua primeira
fase de evolução, ele é o direito aplicável aos membros de determinada corporação
dos comerciantes. Os usos e costumes de cada praça ou corporação tinham
especial importância na sua aplicação.
No início do século XIX,
na França, Napoleão, com a ambição de regular a totalidade das relações
sociais, patrocina a edição de dois monumentais diplomas jurídicos: o Código
Civil (1804) e o Comercial (1808).
Página 46
Inaugura-se, então, um sistema para disciplinar as atividades dos cidadãos, que repercutirá em todos os países de tradição romana, inclusive o Brasil. De acordo com este sistema, classificavam-se as relações que hoje em dia são chamadas de direito privado em civis e comerciais. Para cada regime, estabeleceram-se regras diferentes sobre contratos, obrigações, prescrição, prerrogativas, prova judiciária e foros. A delimitação do campo de incidência do Código Comercial era feita, no sistema francês, pela teoria dos atos de comércio. Sempre que alguém explorava atividade econômica que o direito considera ato de comércio (mercancia), submetia-se às obrigações do Código Comercial (a obrigação de escriturar seu movimento econômico, por exemplo) e passava a usufruir da proteção por ele liberada (utilização da escritura mercantil como prova em processos judiciais).
Na lista dos atos de comércio não se encontravam algumas atividades econômicas que, com o tempo, passaram a ganhar importância equivalente às de comércio, banco, seguro e indústria. É o caso da prestação de serviços, cuja relevância é diretamente proporcional ao processo de urbanização. Também da lista não constavam atividades econômicas ligadas à terra, como a negociação de imóveis, agricultura ou extrativismo. Na Europa Continental, principalmente na França, a burguesia foi levada a travar uma acirrada luta de classes contra o feudalismo, e um dos reflexos disso na ideologia jurídica é a desconsideração das atividades econômicas típicas dos senhores feudais no conceito aglutinador do Direito Comercial do período.
Esta é a segunda fase da trajetória evolutiva da disciplina, em que ela não mais se considera o direito de alguns sujeitos (os comerciantes), mas a disciplina jurídica de determinados atos (os atos de comércio).
Uma vez ultrapassados os condicionantes econômicos, políticos e históricos que ambientaram a teoria dos atos de comércio, ela acabou revelando suas insuficiências como critério para delimitar o objeto do Direito Comercial. Na maioria dos países em que foi adotada, a teoria experimentou ajustes que, em certo sentido, a desnaturaram. Na Alemanha, em 1897, o Código Comercial definiu os atos de comércio como todos os que o comerciante, em sua atividade, pratica, alargando enormemente o conceito. Mesmo onde havia sido concebida, não se distinguem mais os atos de comércio dos civis segundo os parâmetros desta teoria: no direito francês, hoje, qualquer atividade econômica, independentemente de sua classificação, é regida pelo Direito Comercial se explorada uma sociedade.
A insuficiência da teoria dos atos do comércio forçou o surgimento de outro critério identificador do âmbito de incidência do Direito Comercial: a teoria da empresa.
Página 47
3.
TEORIA DA EMPRESA
Em 1942, na Itália, surge um novo sistema de regulação das atividades econômicas dos particulares. Nele, alarga-se o âmbito de incidência do Direito Comercial, passando as atividades de prestação de serviços e ligadas à terra a se submeterem às mesmas normas aplicáveis às comerciais, bancárias, securitárias e industriais. Chamou-se o novo sistema de disciplina das atividades privadas de teoria da empresa. O Direito Comercial, em sua terceira etapa evolutiva, deixa de cuidar de determinadas atividades (as de mercancia) e passa a disciplinar uma forma específica de produzir ou circular bens ou serviços, a empresarial. Atente para o local e ano em que a teoria da empresa se expressou pela primeira vez no ordenamento positivo. O mundo estava em guerra e, na Itália, governava o ditador fascista Mussolini.
A ideologia fascista não é tão sofisticada como a comunista, mas um pequeno paralelo entre ela e o marxismo ajuda a entender a ambientação política do surgimento da teoria da empresa. Para essas duas concepções ideológicas, burguesia e proletariado estão em luta; elas divergem sobre como a luta terminará. Para o marxismo, o proletariado tomará o poder do Estado, expropriará das mãos da burguesia os bens de produção e porá fim as classes sociais (e, em seguida, ao próprio Estado), reorganizando-se as relações de produção.
Já para o fascismo, a luta de classes termina em harmonização patrocinada pelo estado nacional. Burguesia e proletariado superam seus antagonismos na medida em que se unem em torno dos superiores objetivos da nação, seguindo o líder (Duce), que é intérprete e guardião destes objetivos. A empresa, no ideário fascista, representa justamente a organização em que se harmonizam as classes em conflito. Vale notar que Asquini, um dos expoentes da doutrina comercialista italiana, ao tempo do governo fascista, costumava apontar como um dos perfis da empresa o corporativo, em que se expressava a comunhão dos propósitos de empresário e trabalhadores.
A teoria da empresa acabou se desvencilhando das raízes ideológicas fascistas. Por seus méritos técnicos, sobreviveu à redemocratização da Itália e permanece delimitando o Direito Comercial daquele país até hoje. Também por sua operacionalidade, adequada aos objetivos da disciplina da exploração de atividades econômicas por particulares no nosso tempo, a teoria da empresa inspirou a reforma da legislação comercial de outros países de tradição jurídica romana, como a da Espanha em 1989.
No Brasil, o Código Comercial de 1850 (cuja primeira parte é revogada com a entrada em vigor do Código Civil de 2002 - art. 2.045) sofreu forte influência da teoria dos atos de comércio.
Página 48
O regulamento 737, também daquele ano, que disciplinou os procedimentos a serem observados nos então existentes Tribunais do Comércio, apresentava a relação de atividades econômicas reputadas mercancia. Em linguagem atual, esta relação compreenderia: a) compra e venda de bens móveis ou semoventes, no atacado ou varejo, para revenda ou aluguel; b) indústria; c) bancos; d) logística; e) espetáculos públicos; f) seguros; g) armação e expedição de navios.
As defasagens entre a teoria dos atos de comércio e a realidade disciplinada pelo Direito Comercial - sentidas especialmente no tratamento desigual dispensado à prestação de serviços, negociação de imóveis e atividades rurais - e a atualidade do sistema italiano de bipartir o direito privado começam a ser apontadas na doutrina brasileira nos anos 1960. Principalmente depois da adoção da teoria da empresa pelo Projeto de Código Civil de 1975 (ela tinha sido também lembrada na elaboração do Projeto de Código das Obrigações, de 1965, não convertido em lei), os comercialistas brasileiros dedicam-se ao seu estudo, preparando-se para as inovações que se seguiriam à entrada em vigor da codificação “unificada” do direito privado, prometida para breve.
Mas, o projeto tramitou com inesperada lentidão. Durante um quarto de século, enquanto pouca coisa ou nada acontecia no Congresso e a doutrina comercialista já desenvolvia suas reflexões à luz da teoria da empresa, alguns juízes começaram a decidir processos desconsiderando o conceito de atos de comércio - embora fosse este ainda o do direito positivo, porque vigorava a parte primeira do Código Comercial. Estes juízes concederam a pecuaristas um favor legal então existente apenas para os comerciantes (a concordata), decretaram a falência de negociantes de imóveis, asseguraram a renovação compulsória do contrato de aluguel em favor de prestadores de serviço, julgando, enfim, as demandas pelo critério da empresarialidade. Durante este largo tempo, também, as principais leis de interesse do direito comercial editadas já se inspiraram no sistema italiano, e não mais no francês. São exemplos o Código de Defesa do Consumidor de 1990, a Lei de Locação Predial Urbana de 1991 e a Lei do Registro de Empresas de 1994.
Em suma, pode-se dizer que o direito brasileiro já incorporara - nas lições da doutrina, na jurisprudência e em leis esparsas - a teoria da empresa, mesmo antes da entrada em vigor do Código Civil. Conclui-se a demorada transição quando do início da vigência deste.
Página 49
4.
CONCEITO DE EMPRESÁRIO
Empresário é definido na
lei como o profissional exercente de “atividade econômica organizada para a produção ou a circulaçãode
bens ou de serviços" (CC, art. 966). Destacam-se da definição as noções de profissionalismo,
atividade econômica organizada e produção
ou circulação de bens ou serviços.
Profissionalismo. A noção de exercício profissional de
certa atividade é associada, na doutrina, a considerações de três ordens, A
primeira diz respeito à habitualidade. Não se considera profissional quem
realiza tarefas de modo esporádico. Não será empresário, por conseguinte,
aquele que organizar episodicamente a produção de certa mercadoria, mesmo
destinando-a à venda no mercado. Se
está apenas fazendo um teste, com o objetivo de verificar se tem apreço
ou desapreço pela vida empresarial ou para socorrer situação emergencial
em suas finanças, e não se toma
habitual o exercício da atividade, então ele não é empresário. O segundo
aspecto do profissionalismo é a pessoalidade. O empresário, no exercício da
atividade empresarial, deve contratar empregados.
São estes que, materialmente falando, produzem ou fazem circular bens ou
serviços. O requisito da pessoalidade explica por que não é o empregado considerado
empresário. Enquanto este último, na condição de profissional, exerce a
atividade empresarial pessoalmente, os empregados, quando produzem ou circulam
bens ou serviços, fazem-no em nome do empregador.
Estes dois pontos
normalmente destacados pela doutrina, na discussão do conceito de
profissionalismo, não são os mais importantes. A decorrência mais relevante da noção está no monopólio das informações que o empresário
detém sobre o produto ou serviço objeto de sua empresa. Este é o sentido com
que se costuma empregar o termo no âmbito das relações de consumo. Como o
empresário é um profissional, as informações sobre os bens ou serviços que
oferece ao mercado - especialmente as que dizem respeito às suas condições de uso, qualidade, insumos
empregados, defeitos de fabricação, riscos potenciais à saúde ou vida dos
consumidores - costumam ser de seu inteiro conhecimento. Porque profissional,
o empresário tem o dever de conhecer estes e outros aspectos dos bens ou
serviços por ele fornecidos, bem como o de informar amplamente os consumidores
e usuários.
Atividade. Se empresário é o exercente profissional de uma atividade econômica organizada, então empresa é uma atividade; a de produção ou circulação de bens ou serviços. É importante destacar a questão. Na linguagem cotidiana, mesmo nos meios jurídicos, usa-se a expressão “empresa” com diferentes e impróprios significados. Se alguém diz “a empresa faliu” ou “a empresa importou essas mercadorias", o termo é utilizado de forma errada, não técnica.
Página 50
A empresa, enquanto atividade, não se confunde com o sujeito de direito que a explora, o empresário. É ele que fale (“quebra”) ou importa mercadorias. Similarmente, se uma pessoa exclama “a empresa está pegando fogo!” ou constata “a empresa foi reformada, ficou mais bonita”, está empregando o conceito equivocadamente. Não se pode confundir a empresa com o local em que a atividade é desenvolvida. O conceito correto nessas frases é o de estabelecimento empresarial; este sim pode incendiar-se ou ser embelezado, nunca a atividade. Por fim, também é equivocado o uso da expressão como sinônimo de sociedade. Não se diz “separam-se os bens da empresa e os dos sócios em patrimônios distintos”, mas “separam-se os bens sociais e os dos sócios”; não se deve dizer “fulano e beltrano abriram uma empresa”, mas “eles contrataram uma sociedade”.
Somente se emprega de modo técnico o conceito de empresa quando for sinônimo de empreendimento. Se alguém reputa “muito arriscada a empresa”, está certa a forma de se expressar: o empreendimento em questão enfrenta consideráveis riscos de insucesso, na avaliação desta pessoa. Como ela se está referindo à atividade, é adequado falarem empresa. Outro exemplo: no princípio da preservação da empresa, construído pelo moderno Direito Comercial, o valor básico prestigiado é o da conservação da atividade (e não do empresário, do estabelecimento ou de uma sociedade), em virtude da imensa gama de interesses que transcendem os dos donos do negócio e gravitam em torno da continuidade deste; assim os interesses de empregados quanto aos seus postos de trabalho, de consumidores em relação aos bens ou serviços de que necessitam, do fisco voltado à arrecadação e outros.
Econômica. A atividade empresarial é econômica no sentido de que busca gerar lucro para quem a explora. Note-se que o lucro pode ser o objetivo da produção ou circulação de bens ou serviços, ou apenas o instrumento para alcançar outras finalidades. Religiosos podem prestar serviços educacionais (numa escola ou universidade) sem visar especificamente o lucro. É evidente que, no capitalismo, nenhuma atividade econômica se mantém sem alguma lucratividade e, por isso, o valor total das mensalidades deve superar o das despesas também nesses estabelecimentos educacionais. Mas a escola ou universidade religiosas podem ter objetivos não lucrativos, como a difusão de valores ou criação de postos de emprego para os seus sacerdotes. Neste caso, o lucro é meio e não fim da atividade econômica.
Organizada. A empresa é atividade organizada no sentido de que nela se encontram articulados, pelo empresário, os quatro fatores de produção: capital, mão de obra, insumos e tecnologia. Não é empresário quem explora atividade de produção ou circulação de bens ou serviços sem alguns desses fatores.
Página 51
O comerciante de perfumes que leva ele mesmo, à sacola, os produtos até os locais de trabalho ou residência dos potenciais consumidores explora atividade de circulação de bens, fá-lo com intuito de lucro, habitualidade e em nome próprio, mas não é empresário, porque em seu mister não contrata empregado, não organiza mão de obra. A tecnologia, ressalte-se, rilo precisa ser necessariamente de ponta, para que caracterização da empresarialidade. Pressupõe-se apenas que o empresário, ao estruturar a organização econômica, detenha e use os conhecimentos próprios aos bens ou serviços que pretende oferecer ao mercado, sejam estes sofisticados ou de amplo conhecimento.
Produção de bens ou serviços. Produção de bens é a fabricação de produtos ou mercadorias. Toda atividade de indústria é, por definição, empresarial. Produção de serviços, por sua vez, é a prestação de serviços. São exemplos de produtores de bens: montadoras de veículos, fábricas de eletrodomésticos, confecções de roupas; e de produtores de serviços: bancos, seguradoras, hospitais, escolas, estacionamentos, provedores de acesso à internet.
Circulação de bens ou serviços. A atividade de circular bens é a do comércio, em sua manifestação originária: ir buscar o bem no produtor para trazê-lo ao consumidor. É a atividade de intermediação na cadeia de escoamento de mercadorias. O conceito de empresário compreende tanto o atacadista como o varejista, tanto o comerciante de insumos como o de mercadorias prontas para o consumo. Os de supermercados, concessionárias de automóveis e lojas de roupas são empresários. Circular serviços é intermediar a prestação de serviços. A agência de turismo não presta os serviços de transporte aéreo, traslados e hospedagem, mas os intermedeia quando monta um pacote de viagem.
Bens ou serviços. Até a difusão do comércio eletrônico, no fim dos anos 1990, a distinção entre bens ou serviços não comportava, na maioria das vezes, maiores dificuldades: bens são corpóreos, enquanto os serviços não têm materialidade. A prestação de serviços consistia sempre numa obrigação de fazer. Com a intensificação do uso da internet para a realização de negócios e atos de consumo, certas atividades resistem a classificação nesses moldes. A assinatura de jornal virtual, com exatamente o mesmo conteúdo do jornal de papel, é um bem ou serviço? Os chamados bens virtuais, como programas de computador ou arquivo de música baixada pela internet, em que categoria devem ser incluídos? Mesmo sem resolver essas questões, não há dúvidas, na caracterização de empresário, de que o comércio eletrônico, em todas as suas várias manifestações (páginas B2B, B2C ou C2C), é atividade empresarial (ver Cap. 5, item 6).
Página 52
5.
ATIVIDADES ECONÔMICAS CIVIS
A teoria da empresa não acarreta a superação da bipartição do direito privado, que o legado jurídico de Napoleão tornou clássica nos países de tradição romana. Altera o critério de delimitação do objeto do Direito Comercial – que deixa de ser os atos de comércio passa a ser a empresarialidade – mas não suprime a dicotomia entre o regime jurídico civil e comercial. Assim, de acordo com o Código Civil, continuam excluídas da disciplina juscomercialista algumas atividades econômicas. São atividades civis, cujos exercentes não podem, por exemplo, requerer a recuperação judicial, nem falir.
São quatro hipóteses de atividades econômicas civis. A primeira diz respeito às exploradas por quem não se enquadra no conceito legal de empresário. Se alguém presta serviços diretamente, mas não organiza uma empresa (não tem empregados, por exemplo), mesmo que o faça profissionalmente (com intuito lucrativo e habitualidade), ele não é empresário e o seu regime será o civil. Aliás, com o desenvolvimento dos meios de transmissão eletrônica de dados, estão surgindo atividades econômicas de relevo exploradas sem empresa, em que o prestador dos serviços trabalha sozinho em casa.
As demais atividades civis são as dos profissionais intelectuais, dos empresários rurais não registrados na Junta Comercial e a das Cooperativas.
5, 1. Profissional intelectual
Não se considera empresário, por força do parágrafo único do art. 966 do CC, o exercente de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, mesmo que contrate empregados para auxiliá-lo em seu trabalho. Estes profissionais exploram, portanto, atividades econômicas civis, não sujeitas ao Direito Comercial. Entre eles se encontram os profissionais liberais (advogado, médico, dentista, arquiteto etc.), os escritores e artistas de qualquer expressão (plásticos, músicos, atores etc.).
Há uma exceção, prevista no mesmo dispositivo legal, em que o profissional intelectual se enquadra no conceito de empresário. Trata-se da hipótese em que o exercício da profissão constitui elemento de empresa.
Para compreender o conceito legal, convém partir de um exemplo. Imagine o médico pediatra recém-formado, atendendo seus primeiros clientes no consultório. Já contrata pelo menos uma secretária, mas se encontra na condição geral dos profissionais intelectuais: não é empresário, mesmo que conte com o auxílio de colaboradores. Nesta fase, os pais buscam seus serviços em razão, basicamente, de sua competência como médico. Imagine, porém, que, passando o tempo, este profissional amplie seu consultório, contratando, além de mais pessoal de apoio (secretária, atendente, copeira etc.), também enfermeiros e outros médicos.
Página 53
Não chama mais o local de
atendimento de consultório, mas de clínica. Nesta fase de transição, os
clientes ainda procuram aqueles serviços de medicina pediátrica, em razão da
confiança que depositam no trabalho daquele médico, titular
da clínica. Mas a clientela se amplia e já há, entre os pacientes, quem nunca
foi atendido diretamente pelo titular, nem o conhece. Numa fase seguinte,
cresce mais ainda aquela
unidade de serviços. Não se chama mais clínica, e sim hospital pediátrico. Entre os muitos funcionários,
além dos médicos, enfermeiros e atendentes, há contador, advogado, nutricionista,
administrador hospitalar, seguranças, motoristas e outros. Ninguém mais procura os serviços ali oferecidos em
razão do trabalho pessoal do médico que os organiza. Sua individualidade se
perdeu na organização empresarial. Neste momento, aquele profissional intelectual tornou-se
elemento de empresa. Mesmo que
continue clinicando, sua maior contribuição para a prestação dos serviços
naquele hospital pediátrico é a de organizador dos fatores de produção. Foge,
então, da condição geral dos profissionais intelectuais e deve ser considerado,
juridicamente, empresário.
Também os outros
profissionais liberais e artistas sujeitam-se à mesma regra. O escultor que
contrata auxiliar para funções operacionais (atender o
telefone, pagar contas no banco, fazer moldes, limpar o ateliê) não é empresário. Na medida em que expande
a procura por seus trabalhos, e ele contrata vários funcionários para imprimir
maior celeridade à produção, pode ocorrer a
transição dele da condição jurídica de profissional intelectual para a de
elemento de empresa. Será o caso, se a reprodução de esculturas assinaladas com
sua assinatura não depender mais de nenhuma ação pessoal direta dele. Tomar-se-á, então, juridicamente
empresário.
5.2. Empresário rural
Atividade econômica
rural é a explorada normalmente fora
da cidade. Certas atividades produtivas não são costumeiramente exploradas em
meio urbano, por razões de diversas ordens (materiais, culturais, econômicas
ou jurídicas). São rurais, por
exemplo, as atividades econômicas de plantação de vegetais destinadas a alimentos, fonte energética ou matéria-prima
(agricultura, reflorestamento), a
criação de animais para abate, reprodução, competição ou lazer (pecuária,
suinocultura, granja, equinocultura) e o extrativismo vegetal (corte de árvores), animal (caça e pesca)
e mineral (mineradoras, garimpo).
Página 54
As atividades rurais, no Brasil, são exploradas em dois tipos radicalmente diferentes de organizações econômicas. Tomando-se a produção de alimentos, por exemplo, encontra-se na economia brasileira, de um lado, a agroindústria (ou agronegócio) e, de outro, a agricultura familiar. Naquela, emprega-se tecnologia avançada, mão de obra assalariada (permanente e temporária), especialização de culturas, grandes áreas de cultivo; na familiar, trabalham o dono da terra e seus parentes, um ou outro empregado, e são relativamente menores as áreas de cultivo. Convém registrar que, ao contrário de outros países, principalmente na Europa, em que a pequena propriedade rural tem importância econômica no encaminhamento da questão agrícola, entre nós, a produção de alimentos é altamente industrializada e se concentra em grandes empresas rurais. Por isso, a reforma agrária, no Brasil, não é solução de nenhum problema econômico, como foi para outros povos; destina-se a solucionar apenas problemas sociais de enorme gravidade (pobreza, desemprego no campo, crescimento desordenado das cidades, violência urbana etc.).
Atento a esta realidade (dois grandes modelos de exploração de certa atividade econômica), o Código Civil reservou para o exercente de atividade rural um tratamento específico (art. 971). Se ele requerer sua inscrição no registro das empresas (Junta Comercial), será considerado empresário e submeter-se-á às normas de Direito Comercial. Esta deve ser a opção do agronegócio. Caso, porém, não requeira a inscrição neste registro, não se considera empresário e seu regime será o do Direito Civil. Esta última deverá ser a opção predominante entre os titulares de negócios rurais familiares.
5.3. Cooperativas
Desde o tempo em que a delimitação do objeto do Direito Comercial era feita pela teoria dos atos de comércio, há duas exceções a assinalar no contexto do critério identificador desse ramo jurídico. De um lado, a sociedade por ações, que será sempre comercial, independentemente da atividade que explora (LSA, art. 2o, § 2o; CC, art. 982). De outro, as cooperativas, que são sempre sociedades simples, independentemente da atividade que exploram (art. 982).
As cooperativas, normalmente, dedicam-se às mesmas atividades dos empresários e costumam atender aos requisitos legais de caracterização destes (profissionalismo, atividade econômica organizada e produção ou circulação de bens ou serviços), mas, por expressa disposição do legislador, que data de 1971, não se submetem ao regime jurídico-empresarial. Quer dizer, não estão sujeitas à falência e não podem requerer a recuperação judicial. Sua disciplina legal específica encontra-se na Lei 5.764/71 e nos arts. 1.093 a 1.096 do CC, e seu estudo cabe ao Direito Civil.
Página 55
6.
EMPRESÁRIO INDIVIDUAL
O empresário pode ser pessoa física ou jurídica. No primeiro caso, denomina-se empresário individual; no segundo, sociedade empresária.
Deve-se desde logo acentuar que os sócios da sociedade empresária não são empresários. Quando pessoas (naturais) unem seus esforços para, em sociedade, ganharem dinheiro com a exploração empresarial de uma atividade econômica, elas não se tornam empresárias. A sociedade por elas constituída (uma pessoa jurídica com personalidade autônoma, sujeito de direito independente) é que será empresária, para todos os efeitos legais. Os sócios da sociedade empresária são empreendedores ou investidores, de acordo com a colaboração dada à sociedade: os empreendedores, além de capital, costumam devotar também trabalho à pessoa jurídica, na condição de seus administradores, ou as controlam; os investidores limitam-se a aportar capital. As regras que são aplicáveis ao empresário individual não se aplicam aos sócios da sociedade empresária - é muito importante apreender isto.
O empresário individual, em regra, não explora atividade economicamente relevante. Em primeiro lugar, porque negócios de vulto exigem naturalmente grandes investimentos. Além disso, o risco de insucesso, inerente a empreendimento de qualquer natureza e tamanho, é proporcional às dimensões do negócio: quanto maior e mais complexa a atividade, maiores serão os riscos. Em consequência, as atividades de maior envergadura econômica são exploradas por sociedades empresárias anônimas ou limitadas, que são os tipos societários que melhor viabilizam a conjugação de capitais e segregação de riscos (limitação de perdas). Aos empresários individuais sobram os negócios rudimentares e marginais, muitas vezes ambulantes. Dedicam-se a atividades como varejo de produtos estrangeiros adquiridos em zonas francas (sacoleiros), confecção de bijuterias, de doces para restaurantes ou bufês, quiosques de miudezas em locais públicos, bancas de frutas ou pastelarias em feiras semanais etc.
Em relação às pessoas físicas, o exercício de atividade empresarial é vedado em duas hipóteses (relembre-se que não se está cuidando, aqui, das condições para uma pessoa física ser sócia de sociedade empresária, mas para ser empresária individual). A primeira diz respeito à proteção dela mesma, expressa em normas sobre capacidade (CC, arts. 972, 974 a 976); a segunda refere-se à proteção de terceiros e se manifesta em proibições ao exercício da empresa (CC, art. 973). Desta última, tratarei mais à frente (Cap. 2, item 3).
Página 56
Para ser empresário individual, a pessoa deve encontrar-se em pleno gozo de sua capacidade civil. Não têm capacidade para exercer empresa, portanto, os menores de 18 anos não emancipados, ébrios habituais, viciados em tóxicos, os que não puderem exprimir a vontade, os pródigos, e, nos termos da legislação própria, os indígenas. Destaque-se que o menor emancipado (por outorga dos pais, casamento, nomeação para emprego público efetivo, estabelecimento por economia própria, obtenção de grau em curso superior), exatamente por se encontrar no pleno gozo de sua capacidade jurídica, pode exercer empresa como o maior.
No interesse do incapaz, prevê a lei hipótese excepcional de exercício da empresa: pode ser empresário individual o incapaz autorizado pelo juiz. O instrumento desta autorização denomina-se alvará, A circunstância em que cabe essa autorização é especialíssima. Ela só poderá ser concedida pelo Judiciário para o incapaz continuar exercendo empresa que ele mesmo constituiu, enquanto ainda era capaz, ou que foi constituída por seus pais ou por pessoa de quem o incapaz é sucessor. Não há previsão legal para o juiz autorizar o incapaz a dar inicio a novo empreendimento.
O exercício da empresa por incapaz autorizado é feito mediante representação (se absoluta a incapacidade) ou assistência (se relativa). Se o representante ou o assistido for ou estiver proibido de exercer empresa, nomeia-se, com aprovação do juiz, um gerente. Mesmo não havendo impedimento, se reputar do interesse do incapaz, o juiz pode, ao conceder a autorização, determinar que atue no negócio o gerente. A autorização pode ser revogada pelo juiz, a qualquer tempo, ouvidos os pais, tutores ou representantes legais do menor ou do interdito. A revogação não prejudicará os interesses de terceiros (consumidores, empregados, fisco, fornecedores etc.).
Os bens que o empresário incapaz autorizado possuía, ao tempo da sucessão ou interdição, não respondem pelas obrigações decorrentes da atividade empresarial exercida durante o prazo da autorização, a menos que tenham sido nela empregados, antes ou depois do ato autorizatório. Do alvará judicial constará a relação destes bens.
7.
EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE
LIMITADA
Juridicamente,
a “empresa individual de responsabilidade limitada” (Eireli) não é um empresário individual.
Trata-se da denominação que a lei brasileira adotou para introduzir, entre nós, a figura da sociedade limitada
unipessoal, isto é, a sociedade limitada constituída por apenas um sócio.
Página 57
Embora não tenha se valido
da melhor técnica, a Lei 12.441/2011, ao alterar disposições do Código Civil
para instituir a Eireli, tinha em vista, inegavelmente, trazer para o direito
brasileiro o instituto da sociedade limitada unipessoal. Apesar de ter definido
a nova figura como uma pessoa jurídica diferente das sociedades (CC, art. 44,
VI), e discipliná-la num
Título próprio, entre os dedicados, de um lado, ao empresário
individual e, de outro, às sociedades,
ao dispor detalhadamente sobre
a Eireli a lei valeu-se de
conceitos e dispositivos legais próprios da sociedade limitada.
O sócio único da Eireli,
como todos os sócios de sociedades empresárias, não é empresário. Empresário é a pessoa jurídica
da Eireli. Ela é o sujeito de direito que explora a atividade empresarial,
contrata, emite ou aceita títulos de crédito, é a parte legítima para requerer
a recuperação judicial ou ter a falência requerida e decretada.
Oportunamente, o
legislador deverá corrigir as imprecisões técnicas (“empresa”, recorde-se, é atividade
e não sujeito de direito) e aprimorar a disciplina do tema, tratando, de um
lado, do empresário individual com responsabilidade limitada (em que bens e
obrigações afetos à atividade empresarial constituem um patrimônio de afetação) e, de outro, da sociedade
limitada unipessoal (que, a rigor, não tem nenhuma especificidade em relação à
limitada pluripessoal). Enquanto correção e aprimoramento não vêm, cabe à doutrina e à jurisprudência
procurar sistematizar as imperfeitas disposições legais sobre a Eireli - e a
melhor forma de proceder a essa sistematização consiste em considerá-la como sendo, simplesmente, a (atual)
designação dada pela lei brasileira à sociedade limitada unipessoal.
8.
PREPOSTOS DO EMPRESÁRIO
Como organizador de
atividade empresarial, o empresário (pessoa física ou jurídica) necessariamente
deve contratar mão de obra, que é um dos fatores de produção. Seja como
empregado pelo regime do Direito do Trabalho (CLT) ou como representante, autônomo
ou pessoal terceirizado vinculados
por contrato de prestação de serviços, vários trabalhadores desempenham tarefas
sob a coordenação do empresário. Para efeitos do direito das obrigações, esses
trabalhadores, independentemente da natureza do vínculo contratual mantido com
o empresário, são chamados prepostos
(CC, arts, 1.169 a 1.178).
Página 58
Em termos gerais, os atos dos prepostos praticados no estabelecimento empresarial e relativos à atividade econômica ali desenvolvida obrigam o empresário preponente. Se alguém adentra a loja e se dirige a pessoa uniformizada que lá se encontra, e com ela inicia tratativas negociais (quer dizer, pede informações sobre produto exposto, indaga sobre preço e garantias, propõe forma alternativa de parcelamento etc.), o empresário dono daquele comércio (pessoa física ou jurídica) está sendo contratualmente responsabilizado. As informações prestadas pelo empregado, autônomo ou funcionário terceirizado, bem como os compromissos por eles assumidos, atendidos aqueles pressupostos de lugar e objeto, criam obrigações para o empresário (CC, art. 1.178).
Os prepostos, por evidente, respondem pelos seus atos de que derivam obrigações do empresário com terceiros. Se agiram com culpa, devem indenizar em regresso o preponente titular da empresa; se com dolo, respondem eles também perante o terceiro, em solidariedade com o empresário.
Está o preposto proibido de concorrer com o seu preponente. Quando o faz, sem autorização expressa, responde por perdas e danos. O empresário prejudicado tem também direito de retenção, até o limite dos lucros da operação econômica irregular de seu preposto, sobre os créditos deste. Configura-se, também, eventualmente o crime de concorrência desleal, se houver usurpação de segredo de empresa (LPI, art. 195).
Dois prepostos têm sua atuação referida especificamente no Código Civil: o gerente e o contabilista. O gerente é o funcionário com funções de chefia, encarregado da organização do trabalho num certo estabelecimento (sede, sucursal, filial ou agência). Os poderes do gerente podem ser limitados por ato escrito do empresário. Para produzir efeitos perante terceiros, este ato deve ser arquivado najunta Comercial ou comprovadamente informado para estes. Não havendo limitação expressa, o gerente responsabiliza o preponente em todos os seus atos e pode, inclusive, atuar em juízo pelas obrigações resultantes do exercício de sua função.
Por sua vez, o contabilista é o responsável pela escrituração dos livros do empresário. Só nas grandes empresas este preposto costuma ser empregado; nas pequenas e médias, normalmente, é profissional com quem o empresário mantém contrato de prestação de serviços.
Entre o gerente e o contabilista, além das diferenças de funções e responsabilidades, há também duas outras que devem ser destacadas: enquanto é facultativa a função do gerente (o empresário pode, simplesmente, não ter este tipo de preposto), a do contabilista é obrigatória (salvo se nenhum houver na localidade - CC, art. 1.182); ademais, qualquer pessoa pode trabalhar como gerente, mas apenas os regularmente inscritos no órgão profissional podem trabalhar como contador ou técnico em contabilidade.
Página 59
9.
AUTONOMIA DO DIREITO COMERCIAL
O Direito Comercial (Mercantil, Empresarial ou de Negócios) é área especializada do conhecimento jurídico. Sua autonomia, como disciplina curricular ou campo de atuação profissional específico, decorre dos conhecimentos extra- jurídicos que professores e advogados devem buscar, quando o elegem como ramo jurídico de atuação. Exige-se do comercialista não só dominar conceitos básicos de economia, administração de empresas, finanças e contabilidade, como principalmente compreender as necessidades próprias do empresário e a natureza de elemento de custo que o direito muitas vezes assume para este. Quem escolhe o Direito Comercial como sua área de estudo ou trabalho deve estar disposto a contribuir para que o empresário alcance o objetivo fundamental que o motiva na empresa: o lucro. Sem tal disposição, será melhor - para o estudioso e profissional do direito, para os empresários e para a sociedade - que ele dedique seus esforços a outra das muitas e ricas áreas jurídicas.
No Brasil, a autonomia do Direito Comercial é referida até mesmo na Constituição Federal, que, ao listar as matérias da competência legislativa privativa da União, menciona “direito civil” em separado de “comercial” (CF, art. 22,1).
Não compromete a autonomia do Direito Comercial a opção do legislador brasileiro de 2002 no sentido de tratara matéria correspondente ao objeto desta disciplina no Código Civil (Livro II da Parte Especial). A autonomia didática e profissional não é minimamente determinada pela legislativa. Afinal, Direito Civil não é Código Civil; assim como Direito Comercial não é Código Comercial. À forma considerada mais oportuna de organizar os textos e diplomas legais não corresponde necessariamente a melhor de estudar e ensinar o direito.
Também não compromete a autonomia da disciplina a adoção, no direito privado brasileiro, da Teoria da Empresa. Como visto, a bipartição dos regimes jurídicos disciplinadores de atividades econômicas não deixa de existir, quando se adota o critério da empresarialidade para circunscrever os contornos do âmbito de incidência do Direito Comercial. Aliás, a Teoria da Empresa não importa nem mesmo a unificação legislativa do direito privado.
A demonstração irrespondível de que a autonomia do Direito Comercial não é comprometida nem pela unificação legislativa do direito privado nem pela Teoria da Empresa encontra-se nos currículos dos cursos jurídicos de faculdades italianas.
Página 60
Já se passaram 70 anos da unificação legislativa e da adoção da Teoria da Empresa na Itália, e Direito Comercial continua sendo tratado lá como disciplina autônoma, com professores e literatura especializados. Até mesmo em reformas curriculares recentes, como a empreendida na Faculdade de Direito de Bolonha a partir do ano letivo de 1996/1997, a autonomia do Direito Comercial foi amplamente prestigiada.